Casa própria: sonho ou pesadelo?

Há vinte anos comprei uma casa. Tinha dois filhos para criar e, com toda a despesa doméstica dependendo do meu único salário de professora da UFRN, tive que apertar muito o cinto para juntar o dinheiro da entrada e conseguir o financiamento pela Caixa Econômica Federal. Comprei esta casa que muitos dos meus leitores e amigos conhecem, na rua Neuza Farache, em Natal, no bairro de Capim Macio. O bairro era inóspito, pouco habitado, sem calçamento nem infra-estrutura (ainda não tem calçamento nem rede de esgotos na minha rua, vinte anos depois).

No início, foi um sufoco para conseguir pagar as prestações. Com dois filhos em colégio particular – todo mundo sabe que o ensino público é de qualidade duvidosa – quase nunca sobrava dinheiro para nada, mas eu fazia de tudo para não atrasar as prestações, pagas religiosamente todo dia 28 de cada mês. Meu fundo de garantia também foi todo usado para abater o saldo devedor.

Vinte anos se passaram. Então, ao final dos chamados 240 meses de financiamento, uns dias antes de vencer a última prestação, liguei para a Caixa Econômica para saber qual era o procedimento. A funcionária que me atendeu disse que a Caixa iria analisar o meu contrato e dentro de 30 dias entraria em contato comigo para dar a baixa na hipoteca da casa, se estivesse tudo direitinho; ou me chamar para conversar se houvesse alguma pendência.

Mas não foi isso que aconteceu. Quinze dias depois do telefonema recebi pelo correio um boleto para pagar o “resíduo” do saldo devedor, no valor de R$ 458.314,19 (quatrocentos e cinqüenta e oito mil trezentos e catorze reais e dezenove centavos) e que a Caixa estava refinanciando para mim em 108 (cento e oito) prestações de R$ 8.237.97 (oito mil duzentos e trinta e sete reais e noventa e sete centavos) cada uma. A primeira vence agora em 28 de fevereiro.

Você ficou de boca aberta? Pois eu também fiquei.

Eu sabia que alguns contratos tinham esse problema do tal “resíduo” do saldo devedor, mas nunca imaginei que a coisa chegasse a um nível tão absurdo. Sou aposentada da UFRN, e a minha aposentadoria é menos da metade da pretendida prestação de forma que, nem se eu quisesse pagar, poderia fazê-lo.

Descobri ainda que já paguei, pelos preços de hoje, R$ 146.377,61 (cento e quarenta e seis mil trezentos e setenta e sete reais e sessenta e um centavos) pela casa, que equivale ao preço de mercado do imóvel hoje. Como já paguei isso, e a caixa quer que eu pague mais R$ 889.700,76 (oitocentos e oitenta e nove mil setecentos reais e setenta e seis centavos) –108 prestações multiplicadas pelo valor de R$ 8.237,97 cada – no final o imóvel vai sair pela espetacular soma de R$ 1.036.078,37 (isso mesmo, mais de um milhão de reais!). Se no fim das 108 prestações ainda houver – e certamente haverá – algum resíduo, a importância terá que ser paga em quarenta e oito horas, ou eu perco o imóvel.

Com o boleto na mão, esmagada por essa matemática perversa, senti-me insultada, esbulhada nos meus direitos, ludibriada pela propaganda enganosa do Governo Federal que diz que a “casa própria” é um programa social.

Social como, minha gente? A pessoa passa vinte anos pagando um imóvel, com dificuldade, para depois descobrir, ao final do prazo, que deve uma quantia que dá para cobrar cinco ou seis imóveis iguais ao seu?

Adoeci. Tive gastrite, colite e outras “ites”, tive que ir ao médico e tomar remédios. Passei noites dormindo mal, enquanto não conseguia aclarar as idéias e decidir o que iria fazer. De qualquer maneira, eu sabia e sei que a cobrança é injusta, é aberrante, é desrespeitosa, e provavelmente também é ilegal uma vez que olhando a planilha dos pagamentos, agora já mais calma e mais lúcida, percebi que há cobrança de juros sobre juros.

Procurei os advogados da Associação Nacional dos Mutuários e Moradores, que estão cuidando do caso para mim, pois não tenho condições de arcar com os custos de um grande escritório de advocacia. Nas informações que tive sobre essa Associação, consta que já conseguiram ganho de causa em processos semelhantes. Eu mesma não consigo imaginar outra solução para o caso, uma vez que o aquilo está sendo proposto a mim pela Caixa Econômica é tão absurdo que fere qualquer princípio do bom senso e da razão. De qualquer maneira, estou tranqüila, embora ainda indignada, mas já me recuperei do choque, e me encontro seriamente resolvida a ir até o fim nessa questão.

Quis aqui, meu caro leitor, compartilhar com você esse caso e propor uma reflexão, porque pode ser que você – que Deus o livre! – ou alguém das suas relações esteja com um problema semelhante.

No meu caso, que sou uma pessoa bem informada, com pós-graduação, tenho uma família solidária e amigos fiéis, essa situação me deixou completamente desestruturada, fisicamente doente, emocionalmente arrasada, insultada nos meus direitos individuais e ofendida na minha cidadania. Imagine você então que isso que ocorreu comigo está o tempo inteiro ocorrendo com milhares de mutuários neste país. Muitos são pessoas simples, que não conseguem entender direito os termos de um documento legal. Muitos já estão idosos quando chegam ao final do prazo de financiamento. Muitos são doentes, e têm câncer, diabetes, hipertensão, insuficiência cardíaca. Muitos são pessoas sozinhas ou com outro tipo de dificuldade. Mas todas são pessoas que acreditaram no governo, que passaram a vida – como eu também – fazendo sacrifício para honrar seus compromissos e para ter sobre a cabeça um teto que lhes garantisse a segurança na velhice.

Penso no choque e no sofrimento que deve ser para essas pessoas quando, em vez de receberem a baixa da hipoteca do imóvel que, acreditam elas, acabaram de pagar, recebem friamente, sem aviso, pelo correio, um boleto para pagar uma quantia absurda dessas. Imagino que muita gente, desesperada, pensando que vai perder a casa, vende carro, televisão e geladeira para fazer o pagamento. Imagino a ruína que uma coisa dessas pode causar a uma família que já tem problemas, ou que já está em dificuldades financeiras.

Infelizmente, coisas como essa acontecem todo dia em nosso país, fazendo com que nós, os homens e mulheres de boa vontade, as pessoas de bem, cidadãos cumpridores dos seus deveres, nos tornemos cada vez mais descrentes das Instituições, do Estado e do Governo. Infelizmente, é assim que me encontro agora: indignada, descrente, e com vergonha de ser brasileira.

(Este texto está sendo publicado em todos os espaços em que escrevo em jornais, portais e blogs; está sendo enviado para a minha lista de e-mails, e também para todas as autoridades, ocupantes de cargos públicos e jornalistas que conheço ou tenho acesso ao e-mail. O objetivo é esclarecer e ajudar a quem tem o mesmo problema e denunciar a perversidade dos cálculos usados pelos órgãos responsáveis pelo programa de habitação do governo federal.)

Clotilde Tavares

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N.E.: Esta crônica foi escrita e postada na coluna da autora "Umas e outras", em 17 de fevereiro de 2009

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