Humanos

pelos idos de 60, minha mãe, servidora pública federal, pediu remoção para a cidade de goiânia, por motivo de amor. sempre ele, claro, o amor. era uma cidade novinha, feito brasília, mas onde o pau comeu feio. mamãe morria de medo de tudo, viu seu chefe, alcunhado de comunista, algemado, preso e torturado. até o dia em que foi chamada a prestar 'esclarecimentos' acerca de certos mimos e cartas recebidas de um tal joão, residente em moscou. — vou perder meu cargo, ela disse ao meu pai. papai, amoroso demais, pensou que a perda do cargo seria o menor dos males. então, investido do poder familiar (naquele tempo era assim), assumiu o comando da coisa, foi no lugar de mamãe, meteu a boca no trombone, requisitou as cartas enviadas por joão e as entregou à destinatária. rasuradas, claro. anos depois, em solo brasileiro, os dois amigos puderam se encontrar. em nossa casa. ele, joão, professor da universidade de moscou, evadido da aviação civil brasileira, remetente das singelas cartas, e ela, sua prima e melhor amiga, minha mãe. essa história, ou parte dela, me comove. os tempos eram outros e, como hoje, lamentavelmente, os antagonismos, de qualquer espécie, pareciam mais importantes do que o real afeto humano. e humanos somos todos.

Mariza Lourenço

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