O perfil de um viajante e seu amigo imóvel
É difícil eu poder afirmar que conheço e sou amigo de alguns escritores. Na internet, a concepção que se tem de conhecimento e amizade tem matizes voláteis, e praticamente alguém pode conversar com alguma pessoa de sua profissão ou afinidade por anos a fio sem conhecê-la e uma relação que começa animadora pode dar em nada, porque a comodidade dos e-mails é traiçoeira: facilita tudo e abre um abismo sem tamanho nas possibilidades de contato real; na verdade, essa relação, hoje em dia, já ganhou contornos de uma promiscuidade imensa entre fantasmas que às vezes nunca se conhecem cara a cara nem querem, ao que parece, se conhecer. As pessoas parecem estar vivendo com mitos que não querem desmitificar talvez porque, por pobres de realizações e convivências reais, temam que a realidade se abra abissal diante delas.
Tenho conversado com muita gente, gente admirável, simpática, atenta e pronta em dar respostas, mas as distâncias reais ou os melindres que mal podem ser adivinhados impedem maior contato e nada pode se manter sólido, visto que este é o espírito da atualidade: informativo, veloz, superficial e, finalmente, descomprometido. Quando se quer tocar em algo mais tangível, aí é que se percebe como tudo é evasivo.
Mas posso afirmar que conheço e sou amigo de Ignácio de Loyola Brandão. Talvez porque o tenha conhecido num tempo em que, sem e-mails, nós, escritores, nos conhecíamos, quando distantes geograficamente, por cartas. Eu fui um verdadeiro maníaco de correspondência, pois, morando numa cidade pequena, isolado em grupinhos minoritários ou solitário radical devido aos meus gostos e aspirações, só podia encontrar quem falasse minha língua à distância, nos mundos das capitais, em certos nichos de cultura metropolitana ou cosmopolita que, claro, eu idealizava com ingenuidade inevitável.
Fiz muitos amigos assim, nos anos 70 e 80, principalmente, através de anúncios de correspondência em lugares como "Escrita", "Bondinho", "O Pasquim", "Leia", jornais e revistas alternativos de que pouca gente se lembra hoje em dia. O lugar favorito de minha cidade natal, para mim, era o correio. Sonhava com encontrar, todos os dias, a um toque da chave de minha caixa postal particular, avalanches de envelopes de todos os tipos. Aquela caixa me parecia uma cornucópia das maiores surpresas em termos humanos e civilizados que eu poderia esperar.
O envelope de Loyola, quando o conheci, era o inconfundível envelope do exterior, com bordas em azul e vermelho e selos hieráticos, parecendo um fetiche especial do Estrangeiro inatingível. Eu havia colocado um anúncio pedindo correspondência com adeptos de Albert Camus no jornal "Leia", pois andava lendo muito o argelino, naquela época (inícios dos anos 80). Loyola, então, era alguém que conhecíamos em minha terra pela fama e só; não parecia um personagem que pudesse entrar na diminuta realidade interiorana, por ilustre demais. Pois ele me escreveu, e quase caí de costas quando, virando o envelope, vi quem era o remetente! Contei para todo mundo que Loyola me escrevera, me enxergara, com o maior orgulho.
Na verdade, ele foi, surpreendentemente, a única pessoa a responder ao meu anúncio e me aconselhou alguns livros importados de Camus que ainda não existiam em edições brasileiras. Claro, eu mal podia pensar nisso, e era pobre demais para sequer cogitar de comprá-los. Mas respondi a ele, com entusiasmo, e lhe falei que o conhecia pelos livros, naturalmente, detendo-me em "Dentes ao sol", romance sobre solitários personagens araraquarenses numa Araraquara meio real meio onírica que me impressionara muito. Eu havia escrito um pequeno ensaio sobre esse livro e achei muito oportuno que ele o conhecesse. Gostou muito. E assim nossa troca de idéias começou.
É possível dizer que ele foi o correspondente mais assíduo que tive naqueles anos. E foi também quem, de longe, apareceu como um espírito viajante oracular que se dava ao trabalho de aconselhar, orientar alguém que ainda apalpava seus recursos estéticos, em termos literários, sem referências outras que não os muitos livros lidos, as revistas e os jornais. Aprendi que Loyola era independente, implacável e muito franco em suas críticas, mas também era atencioso e gostava de minhas cartas de um modo enfático, que não permitia dúvidas.
Isso me estimulou muito. Minhas primeiras tentativas de contos e novelas foi ele quem viu. Estava em Berlim dando toda essa atenção a um desconhecido de Novo Horizonte, estado de S. Paulo! Naturalmente, eu ficava grato e me sentindo privilegiado. E lá me vinham bolachas de cerveja, tickets de metrôs da Europa, um que outro souvenir pouco convencional, mas também postais, dos lugares onde passava (Praga, Madri ou Londres). Viajante sempre entusiasmado, Loyola me abria o Mundo e me presenteava com esses fetiches de lugares inacessíveis e míticos. Eu conhecia, na prosa espontânea e despachada de suas cartas, de suas observações, um mundo bem mais real (mas não menos encantador e instigante) do que o de minhas idealizações provincianas. Minha cultura sempre fora mais para livresca, por força das contingências. A dele era ativa, arguta, prática e mergulhada no real.
Foram muitas cartas, e eu nunca o tinha visto em carne e osso, mas sabia dele pelos jornais, revistas, televisão. E sabia que, passando certo número de dias, a chave de minha caixa postal particular se abriria e o envelope com bordas azuis e vermelhas lá estaria, mágico e repleto de novidades. Ele me contava de suas vivências de Berlim, me mostrava uma Alemanha de que eu não sabia nem por sonho. E depois lançou "O verde violentou o Muro". Isso fez com que, nos lançamentos e palestras que acompanharam o livro, aparecesse numa cidade próxima maior que a minha, Catanduva. Alguém de nosso grupo que estudava Letras na cidade avisou-nos que o Loyola lá estaria, palestrando num teatro. Éramos um bando sem recursos, duros, mas não necessariamente mortos, e tínhamos um amigo que estava com um Corcel meio capenga, na época. E para Catanduva fomos todos, querendo vê-lo. Creio que alguns daqueles amigos mal acreditavam que eu fosse mesmo correspondente do Loyola e eu precisava provar essa minha "grandeza".
Foi assim que o vi pela primeira vez, muito à vontade num palco, conversando como se em casa estivesse e tomando um café preparado ali mesmo. Do meio do público, mandei-lhe um bilhetinho. Leu-o, espantado, e pediu que eu me levantasse para me ver. Iria me ver pela primeira vez também. Ao final da palestra, fui conversar com ele, inibido ainda. Ele quis me abraçar e eu fiquei um pouco tolhido. Brincou: "Que é isso, abraço de alemão, pô?" Ele já havia me falado da peculiar frieza dos alemães, tão arraigada que a mania muito brasileira dos abraços entre amigos deixava-os constrangidos e confusos. E foi assim que conheci Loyola, germanicamente tolhido, mas feliz por uma materialização humana do que parecia irreal e longínquo demais.
* * *
Os anos 80 se acabaram e, a certa altura deles, deixamos de nos corresponder. Não houve nenhum rompimento drástico, que me lembre; era a minha vida que ia tomando formas imprevistas. Mas o certo é que os prazeres e as lições das cartas de Loyola me marcaram decisivamente. Das lições, não me esquecerei nunca que, avesso ao beletrismo e à literatice e à curtição de fossa existencial, ele vivia me dando puxões de orelhas à distância, com sua escrita firme e franca, por me achar muito passivo, muito "viajante em torno do umbigo" e cheio de caraminholas que só me impediam de mergulhar na vida decisivamente. "Você fica aí, sem reagir, se achando um tesouro que tem que ser descoberto. Vá à luta, pô!"
Loyola sempre foi assim comigo - terno e incisivo, como um amigo verdadeiro precisa ser. Achava que eu me afundava demais em diários e anotações confessionais por pura auto-indulgência e não organizava minha vida literária e profissional de modo objetivo.
Tinha toda razão. Enquanto eu fazia infindáveis e infrutíferas viagens em torno do meu umbigo, ele viajava pelo mundo real - e com seu gosto desenfreado por viagens, era mesmo o oposto de mim, sedentário e medroso do mundo. Éramos uma dupla incongruente, vistos de fora - o sedentário obstinado e sem esperanças que não se mexe do lugar onde vive e o nômade que passeia pelo mundo, arriscando-se, indo até aonde pode ir, conhecendo tudo, desmistificando sonhos por um lado e ganhando em realidades talvez até superiores a eles por outro. Mas creio que essa incongruência possuía aquela lógica visceral e simbiótica de pessoas aparentemente antagônicas que se completam obscuramente. Mas, não o vi mais por uns bons anos.
Quando o revi, águas puras e turvas já tinham rolado sob minha ponte, eu me casado e estabelecido em Poços de Caldas. Loyola apareceu para uma palestra no programa "O escritor por ele mesmo" do Instituto Moreira Salles e o reencontro foi ótimo. Daí a algum tempo, aos meus 48 anos, o Instituto Moreira Salles publicava meu primeiro livro de contos, "Nó de sombras", e o sinal do quanto eu havia mudado, pessoal e literariamente, foi o fato de o prefácio ter sido feito, com entusiasmo, por ninguém menos que ele. Havia nisso uma lógica que me encantava - ele havia sido um padrinho simbólico de alguém que "não atava nem desatava" e passava a ser padrinho real de alguém que escrevera um livro com começo, meio e fim, por ele aprovado com convicção. Eu saía daquela condição maldita dos que deixam a sua vida literária ser paralisada por um ostracismo ferozmente autocrítico e tinha, pela primeira vez, um objeto palpável no mundo - um livro publicado - e começava uma carreira modesta, mas concreta. Meus livros não eram mais vento engavetado.
E, claro, voltamos a trocar correspondência. Foram os anos em que ele escreveu o depoimento "Veia bailarina", depois de um aneurisma quase fatal que definiu uma virada em sua vida. Escreveu também "O anjo do adeus", um desvairado policial "noir" surrealista transcorrido numa cidade do interior imaginária onde um dos detalhes não era imaginário - o nome da rua onde moro, Guido Borim Filho, e de meu bairro, Parque Pinheiros, foi aproveitado por ele. Loyola sempre brincou, misturando realidades a ficções, colocando nomes ou endereços de amigos em suas narrativas, e na primeira edição de "O beijo não vem da boca" cita trecho de uma carta minha ao personagem de seu livro, um alter-ego óbvio, e me chama de "o misterioso Chico".
Depois, editor da "Vogue Brasil", Loyola continuou a me escrever de qualquer país para onde fosse e eu guardo, dessa segunda fase de nossa correspondência, anos 90, muitas cartas, souvenires de Buenos Aires, Montevidéu, postais da Europa e dos EUA. O viajante entusiasta que ele é pareceu ficar ainda mais ávido e feliz depois do susto do aneurisma - era preciso abraçar a vida feroz e amplamente. Loyola ficou mais denso, urgente, mais apaixonado por ela. Nunca mudou, no entanto, uma face essencial: a do encantado por outros mundos, pelo Desconhecido instigante, que não se contenta com experimentar solitariamente todos os pequenos e grandes encantamentos dessas aventuras e os divide generosamente com os amigos, especialmente com os que, como eu, raramente viajam.
Numa segunda vez em que voltou a Poços para nova palestra no Instituto Moreira Salles, foi que senti que Loyola havia dominado como poucos escritores uma coisa difícil: cativar o público. Com suas histórias, suas piadas, suas observações certeiras da gaiatice e da miséria humana, com um jeito sério e "cara de pau" de dizer coisas absurdas (num "understatement" perfeito), ele encantava a platéia. Conseguia tornar a uma, uma hora e meia das palestras algo que, com bom humor, transmitia todas as idéias sérias sobre literatura, Brasil, política, que tinha, respondendo a tudo que lhe perguntassem, não deixando ninguém insatisfeito. Creio que os anos de tanta estrada, tantas palestras, tantas convivências com lugares e pessoas os mais heterogêneos, tinham tornado infalível o seu gume de comunicador. E há quem se assuste um pouco com ele, achando-o carrancudo, difícil, sem suspeitar do engraçado, vulnerável e acessível que é.
Assim, nossa correspondência continua, agora por e-mails, bem mais rápida e em cima dos fatos. Também, já parecemos tão velhos amigos que duas ou três linhas bastam para confirmar o que andamos pensando ou sentindo. E, na verdade, os e-mails não têm realmente o encanto dos envelopes com bordas azuis e vermelhas que, ao pousarem na minha velha caixa postal do correio de Novo Horizonte, acendiam em mim tantas esperanças e prazeres. São bem outra coisa. Loyola, aliás, lamenta que as pessoas estejam se esquecendo da beleza que havia nas cartas, no tangível, perfumado e misterioso que elas eram, em como podiam ser surpreendentes e decisivas. Em suas crônicas no "Estadão", transmite muito de tudo que sente mundo afora ou vagando por São Paulo e assume a nostalgia não tanto por não sentir-se bem no presente, mas por aquela vontade de dividir emoções fortes, paixões, memórias porque, afinal, "a thing of beauty is a joy forever" e não é saudosismo, mas rendição ao Intemporal.
Loyola não é de lamúrias. Viaja, viaja, viaja. Recebo notícias dele ou por ele por outras pessoas, como recentemente, passando por Pirenópolis, Goiás, foi visto por uma escritora amiga minha,Rosângela Vieira Rocha, que me contou de sua palestra e de como a achara interessante, e depois em Goiânia, era visto por outro amigo meu, o escritor Gil Perini, que me falou dessa passagem também.
Ele é assim - sempre de passagem, sempre acompanhado por sua mulher, Márcia, uma das pessoas mais afáveis que conheço. Sempre "on the road", e falando para um Brasil que me descreve com entusiasmo. Nunca deixa de crer em potencialidades incríveis para esta pátria de aparentemente tão poucos leitores, nunca deixa de descobrir pessoas, bibliotecas, movimentos, feiras, cardápios, modos de vida instigantes, nos cantos mais remotos que se possa imaginar. E, fazendo rir, fazendo refletir, fazendo bem para muita gente que nunca abriu um livro, mas vai fazer depois de conhecê-lo, vem fazendo um trabalho que se conjuga a um prazer que acaba sendo o prazer de muita gente.
Chico Lopes