Ela é ele e eu sou ela

Médico? Ou um observador privilegiado, um santo de pau oco, um olheiro de talentos estranhos? Eu sempre me perguntei se o que estudamos não seja uma prévia de um Grande Estudo Cósmico, pago por Potências Estrangeiras, fugidias e esquivas que também se perguntam infinitamente: Por quê? Para onde erramos, se é que um dia acertaremos?

Pensando assim, num raciocínio leve, eu me preparei para os atendimentos; sou o que sou pelo que tento e intento e não o que pareço. Nestas horas, me reinvento e os sangramentos, os que ainda existem nesta altura, eu remendo e me faço uma cura, cheio de ouvidos atentos. Em realidade, eu acho que se há alguma, esta passa pelo alento das pessoas que nos procuram.
Eis que entra um casal. Ela, uma moça que tem leveza, até uma certa pose blasée, alta, esguia e com ombros desnudos. Ele, seu acompanhante, tem o temperamento calmo, olhos brilhantes e eu diria até com certa ênfase, um quê de feminino no comportamento apesar de sua textura de dureza e seu comportamento decisivo. Sim, pois é ele que fala:

 – Viemos aqui porque queremos engravidar.
 – Queremos ter um filho, doutor.

Eu coço a cabeça. O que vejo à frente, a moça de ombros desnudos e pose blasée e os ecos de sua afirmação no ar e o olhar firme de seu companheiro; que diabos isso tem de subtexto? O médico deve interpretar nas entrelinhas, a saúde na maior parte das vezes se expressa de maneira sub-reptícia e no mais das vezes o que se chama de doença se esconde atrás de falas esquivas e olhares que se enviesam. Há muito que descobri em mim o espelho de algo que não havia e estava lá, como um réptil, sibilando em entranhas molestas.

 – Mas... vocês são casados?
 – Somos.
 – Então... seguir os ditames da natureza, os riachos do mundo, as essências da paixão... este é o encanto e a verdadeira esfera. Não há que errar!

Os dois se olham de maneira cúmplice: pronto, há o poder do convencimento, o efeito placebo de uma fala certa no momento único do encontro de tamanha sacralidade que a luz emana de si própria... mas não. Não é o caso, pois que o casal de estranhos modos ainda se aventa uma interrogação.

– Na verdade...
– Ela não diz, mas somos diferentes.
 – Não entendo! Como seria esta... diferença?
 – Ela sou eu e eu sou ela.

Agora é que nem eu me entendo. Isso era uma afronta? Ou um caso de transmigração de almas? Deveras já tenho ouvido de tudo um pouco, de severas dores a atrozes sofrimentos de corpo sutil, mas por esta realmente não esperava; caiu então a luz de minha compreensão sobre algo que se vê em tantos lugares e agora, bem à minha frente, materializava-se algo fascinante.

 – Por favor, expliquem-me mais de seu problema.
 – Na verdade, não somos um problema. Ela é ele e eu sou ela; somos um casal de almas. Isto é, eu me sinto o homem e ela se sente mulher, mas somos mulher e homem, em corpos diferentes e de almas gêmeas.

Eu, com a máxima delicadeza, visto que estou sempre de razão atenta às modernidades e aos novos rumos da relação humana, pergunto com tato e paciência...

 – E de que maneira posso ajudar vocês?
 – Simples, doutor. Queremos fazer inseminação artificial. Seremos férteis? Pois eu quero que ela tenha um filho dela em mim. E eu quero ser o pai do filho dela, se é que me entende.
 – Ora, se entendo, meus caros. Mas vejamos, estudemos a situação.
 – Pois não!
 – Você é homem, não é?
 – Na verdade...
 – Digo, fisiologicamente falando. É homem?
 – Na verdade, não me sinto assim. Ela é. 
 – Mas você (aponto para ele) é mulher, digo, em corpo, que sei que de espírito não o é.
 – Certeiro.
 – Mas, desculpem-me a intromissão, qual o sentido de uma inseminação artificial, útero de aluguel, custos enormes, se a natureza lhes deu esta dádiva assim como ela existe, de maneira que...

Eu me pergunto por quantos caminhos temos andado para que nos torçamos tanto para dizer tais e quais verdades, pois que o que hoje é uma exatidão, há eras poderia ser uma condenação à heresia, o que ontem era invenção, hoje em verdade se sustenta. E eu, perante àquela união de almas trocadas pude fazer um reparo num caos que talvez se instalasse, desde que o próprio objeto de tal questão se insinuava como uma figura destinada a confundir a ambos.

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 – Doutor, há um casal que lhe procura. Os dois dizem... (risos) que em verdade o filho é seu!
 – Mas que patuscada é esta?
 – Deixo-os entrar?
 – Mas é claro! Só me faltava esta, hehehehe. Um filho!!

Entram os dois de alma trocada e hoje, eu insisto, hoje nos corpos certos, se é que me entendem. Trazem nos braços a criaturinha mais linda: Puxou ao pai que era a mãe e um pouco à mãe que era o pai. E era lindo ver como se entendiam os três, com mais sentidos que os cinco com que contamos; certamente vocês sabem do que eu falo.

Flavio Gimenez

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