OS SEM-TERRA

Na inauguração do canal de Suez, Eça de Queiroz abriu assim sua reportagem: “aqui a mão do homem corrige a natureza”. Se visitasse o Horto Florestal da Fepasa, na estrada para a represa do Broa, nas proximidades de São Carlos, poderia escrever: “o desemprego está entortando o Brasil”.

À entrada, à beira da cerca de arame farpado uma barraca tosca, coberta de plástico preto, é o primeiro indício da ocupação. Parece de luto o horto e há muitas tristezas ao primeiro olhar.

É um fim de tarde sem vento e a bandeira  dos sem-terra jaz dependurada murcha na ponta de uma grande vara que eles fincaram naquele pedaço de terra abandonado. Ao chegar, um vivente vê apenas duas entidades que não fugiram da terra ruim: os eucaliptos e os sem-terra. Àrvores e homens foram postos ali. Umas, plantadas pela Ripasa, empresa fabricadora de papel, que alugou o terreno para plantar eucaliptos; outros, conduzidos por líderes que dão uma esperança aos que já perderam quase tudo na vida.

O movimento é organizado. Um senhor de presumidos cinqüenta anos nos recebe com um facão de cortar cana. O cabo está enrolado num pedaço de borracha. Outros quatro ou cinco homens o rodeiam. É a sentinela avançada do acampamento.

Um de nós atravessa a cerca metendo-se entre os arames. Com boa vontade, o homem com o facão abre a cancela, composta de um pedaço de pau e três fios, e nos convida a entrar. Para ir adiante, porém, a uns 200 metros de onde está a sentinela, devemos aguardar “o chefe”.  Enquanto isso, o homem com o facão, rodeado pelos colegas sentinelas, vai explicando o que os trouxe ali. Há gente das mais diversas procedências. Ele tem 48 anos e está desempregado, “como todo mundo”. Nos anos 70 deixou o Ceará e veio para São Paulo, onde trabalhou como metalúrgico. “Muito antes desse desemprego medonho que está assolando nossa pátria, quem tinha 40 anos não arrumava emprego em lugar nenhum. Para um trabalhador, começa a idade das doenças e o patrão não quer mais saber da gente”.  Outros vieram de Franca, Sertãozinho, Araraquara e de algumas cidades do Paraná. Depois que chegaram, juntaram-se a eles desempregados de São Carlos.

Antes da volta do chefe, chega Lineu Navarro, vereador do PT em São Carlos. Conversa baixinho com os sem-terra e o clima fica mais leve. Apesar da incrível habilidade verbal do homem com facão na mão, que explica tudo aos borbotões, e da silenciosa concordância dos que o rodeiam, há alguma tensão no ar, principalmente para quem leu Euclides da Cunha e aprendeu que as aparências enganam. De repente a calma pode transformar os Quasímodos em valentes guerreiros.

Aparece a segunda razão de o vereador ser bem aceito entre os sem-terra ali acampados. A primeira é porque ele é do Partido dos Trabalhadores, cuja estrela divide com a cruz da Igreja os melhores apoios ao movimento. A segunda é que o vereador tratamudeia umas palavrinhas e mais ouve do que fala. Enfaticamente concorda que é preciso esperar o chefe.

Enfim, chega o chefe. Parece surpreso com a nossa presença, traz o semblante um pouco carregado, mas somente até conversar com o vereador. Desdobra-se então naquela gentileza sincera e eficiente dos simples. Diz que podemos segui-lo. Toma a dianteira com seu carro e nós o seguimos no nosso.

Duzentos metros depois damos com cerca de 300 pessoas. São as tais 90 famílias de que nos falaram os sentinelas. Homens, mulheres, crianças, cachorros e gatos dividem um espaço comum. Meu espanto deve ser semelhante ao do padre jesuíta Fernão Cardim, que em suas famosas cartas reprovou a falta de divisão de espaço domiciliar entre os índios brasileiros do século XVI.

Um abandonado galpão de alvenaria emerge no meio de barracas semelhantes às dos sentinelas. Um senhor de seus sessenta anos cozinha feijão numa panela sobre um fogão improvisado. Em outros barracos, gestos semelhantes. Adiante uma senhora dá banho numa criança. Tem seis filhos. Agora só falta dar banho em mais cinco. Mas ela explica que os mais velhos se encarregarão dos mais novos. Ela dá banho apenas no mais novinho. Bem perto dali uma linda morena, com dentição perfeita, formas arredondadas e carnudinhas como a ex-sem-terra que posou nua para a revista Playboy, come coquinhos em companhia de uns pequerruchos que a rodeiam e para quem ela, com paciência, vai preparando as frutinhas.

Um dos homens tem um só dedo numa das mãos. Não conferi, com medo de não ser bem entendido e assim aumentar seu sofrimento com  meu olhar bisbilhoteiro. Mas ao apertar sua mão para cumprimentá-lo, senti aquele vazio imenso: eu apertava um dedo apenas. “Esse coitado teve um pavoroso acidente de trabalho”, me diz outro.

Os eucaliptos demoram sete anos para produzir papel. E as crianças ali ao redor,  quase todas em idade escolar, vão esperar quanto tempo para voltar à escola? “Lá onde a gente morava, eu gostava da escola. A tia (professora) era bem boazinha”, me diz uma menina de seus 8 anos, enroscando-se timidamente em outra tia. Mas essa não é professora e a criança, como todas as do acampamento, está sem escola.

Os sem-terra não têm nada, além da força de estarem unidos em busca de uma solução coletiva. Eles são o melhor exemplo de que a união faz a força. A união, o diálogo com políticos interessados em apoiá-los, as vinculações com a Igreja. O escritor e frade dominicano Frei Betto é um dos consultores do movimento.

Já são 20h e somente agora a noite começa a cair sobre o acampamento. Daqui a pouco haverá um culto ecumênico. A mãe de seis filhos diz que é da Assembléia de Deus. Um eucalipto cheio de braços e galhos destoa da simetria geral. “É que as formigas comeram de um lado, ele cresceu de outro; comeram de outro, ele cresceu de novo”. Deve ter havido muitas tentivas das formigas porque a árvore está cheia de braços que, erguidos para as alturas, parecem implorar socorro ao que está no alto.

No Brasil, sucessivos governos não dão à agricultura e nem à pecuária a atenção que elas fazem por merecer. Afinal, o leite, o pão e a carne vêm de onde? Continuaremos a chorar sobre o leite derramado no chão ou jogado aos porcos porque os custos impedem sua correta comercialização, enquanto importamos leite em pó, pagando em dólar? Sem contar que é mais fácil financiar carro do que trator, arado, insumos, fertilizantes, sementes, colhetadeira. Gastamos bilhões em escorchantes juros a agiotas internacionais e em importações desnecessárias – até carvão para churrasco é importado, o que espantou um ex-ministro da Fazenda do Governo Ernesto Geisel  -  e temos uma política econômica (temos?) que vai fechando indústrias e empresas por todo o Brasil. Apenas em 1998 foram fechados quase 500 empresas, segundo o Ministério do Trabalho.

Enquanto as coisas continuarem assim, o desemprego será sempre o temível monstro. Os ovos são os sem-terra. Quase tudo é equivocado nesse movimento. A começar pelo nome. Do campo ou da cidade, o que lhes falta não é apenas terra. A terra é muito, mas não é tudo. O que lhes falta é emprego. No campo ou na cidade. Eles são os sem-emprego. Nadam contra a correnteza. Mas se plantassem, estariam melhor? Sim, porque ao menos teriam o que comer e não precisariam como agora praticar a mendicância como serôdias ordens religiosas medievais, só que integradas por leigos.

O movimento dos sem-terra é um meio que destituídos de tudo usam para se tornarem proprietários. Mas para onde caminham os sem-terra? Uma vez proprietários – ou assentados, como proclama a semântica do governo – vão precisar de capital para comprar máquinas, combustível, insumos, sementes. O governo não tem, porque o governo não tem nada. Ele tira o recurso do contribuinte, repassando-o para o Movimento dos Sem-Terra (MST).

A força que resolver a grave questão social dos sem-terra haverá de resolver também, e simultaneamente, a questão da terra no Brasil, que se desdobra  em terríveis impasses pelos quais passam hoje a agricultura e a pecuária nacionais.

Se o horto florestal da Fepasa fosse uma fazenda de particulares, já teria havido conflito. Mas como o proprietário é a sociedade, aqueles 900 hectares semelham uma terra coletiva. Seria bom que em São Carlos a experiência fosse implementada. Sendo uma cidade universitária, haveria um privilegiado laboratório para se verificar, não em livro, mas à luz deles, o que acontece de verdade num acampamento depois que a terra é garantida àqueles que a estão reclamando.

Dá-se o horto da Fepasa aos sem-terra. E depois? Um desafeto do movimento faz irônica e triste advertência: “falta entre eles um casal de japoneses”.  Não lhe faltam argumentos. Há que saber lidar com a terra. E ali entre eles há uma chusma de desempregados urbanos que pouca ou nenhuma experiência têm com as coisas milenares da terra. Entretanto, eles têm grandes esperanças. Se a terra é ruim para milho, arroz ou feijão, plantarão maracujá, abacaxi, mandioca. Uma coisa é certa: terão onde morar e fome não vão passar.

Mas as luzes da cidade continuarão a exercer sobre eles seus terríveis encantos. Não é apenas o Brasil que está numa encruzilhada. O mundo inteiro também. Só que o óbvio ululante de Nelson Rodrigues voltou na boca menos esperada. Georges Soros, o maior especulador do mundo, disse que tudo o que tinha de ser feito errado, foi feito no Brasil.

Pois é. Agora só falta acertar. Mas quem lidera a mudança? Os mesmos que meteram o povo nessa encrenca? Esta pergunta já começa a estremecer o Brasil. Enquanto isso, o Judiciário é chamado para decidir se os sem-terra podem ficar na terra que invadiram. O juiz estará na pele de um ouriço, mas com os espinhos virados para dentro. Como ser humano, é impossível que não se comova com quem está desempregado e não quer roubar, quer trabalhar e para isso está exigindo terra. Mas as nossas leis, o que dizem num caso desses? O juiz precisa aplicar as leis.

Chamado a aplicar justiça a duas mulheres que reclamavam uma mesma criança, o rei Salomão, tido por um dos homens mais sábios de todos os tempos, ameaçou cortar a criança ao meio, dando um pedaço para cada uma das mulheres, pois cada qual dizia ser a mãe verdadeira do menino. Uma delas concordou. A outra, porém, apavorada, pediu ao rei que desse a criança à rival. Então o rei proferiu sua sentença: “a verdadeira mãe é aquela que não consentiu que o menino fosse passado no fio da espada; dai-lhe a criança”.

                                                                  Deonísio da Silva

 
 
 

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