O RIO MORTO
Moro em Joinville: cidade atravessada por um rio morto. Um cadáver
que se escorre diariamente até o mar. Qual a vantagem de se viver
em um local maquiado de europeu, se as vísceras do nosso subdesenvolvimento
terceiro-mundista permanecem intactas, acinzentando a paisagem?
Dizem que vão despoluir o rio Cachoeira. Tão mais fácil
não tê-lo matado. Mas em relação à natureza,
os humanos modernos não gostam do "tão mais fácil",
destroem tudo e depois saem arrependidos, gastando milhões na ressurreição
de rios, florestas, animais.
Após muito tempo podem até conseguir algo próximo
do ideal, mas e os anos de luto? E os anos em que a cidade conviveu com
suas veias entupidas de vergonha e miséria? Em que fomos agredidos
pela incompetência pública que deixou o crescimento desordenado
matar o rio? Em que fomos crescidos na indiferença: "Despoluir o
rio não nos interessa, temos coisas mais importantes a fazer".
O rio Cachoeira era o grande anfitrião destas terras. Primeiro
acolheu os índios e seus sambaquis. Gerações de homens
e mulheres hospedaram-se às suas margens, vivendo plenos de inocência.
Depois chegaram aqueles que vieram de longe se reconstruir na Colônia
Dona Francisca. Talvez não tão inocentes, mas recobertos
em vontades de se firmar. O
rio os aceitou, cedeu suas margens para que se iniciasse a cidade.
Os rios são sempre acolhedores com os que chegam. Sempre convidam
à permanência. O
progresso, em garras de asfalto, é que os trai, tomando-lhes
os espaços, subvertendo a natureza transparente de que são
feitos. O progresso solidifica em podridão os rios. Depois sai atrás
de máquinas e métodos para despoluí-los.
Mesmo amassado entre as avenidas, ignorado pelos prédios e carros,
tem certos dias em que o Cachoeira recupera sua alma de hospedeiro: é
quando as garças chegam por aqui e se aninham em suas margens. Se
por um lado fico triste ao vê-las sobre o cadáver, bicando
o lodo, sujas de esgoto, corrompendo sua natureza,
buscando um alimento inexistente, por outro, as garças me confortam:
elas não desistiram do seu grande irmão.
Ainda o acreditam vivo. Para as garças, um rio nunca morre.
Enquanto aguardo que o Cachoeira seja limpo por mãos humanas,
espero as garças retornarem com a sua delicadeza branca e afagarem
por um tempo os barrancos, as águas, as árvores que ficam
à margem.
Assim, mesmo que ilusoriamente, ele volta a ser vivo.
Volta a ser rio.
Rubens da Cunha