O ABISMO
Fui passar minha lua-de-mel, em Cabo Frio. O hotel em que eu e Issac
ficamos era maravilhoso. Nas tardes de verão íamos passear
naquela cidade colorida pelo sol e as dunas que davam impressão
de um deserto povoado e o oásis de vegetal, era um cenário
deslumbrante.
Na Sexta-feira, encontramos dois casais, nossos conhecidos, que nos
convidaram a ir ao farol, uma propriedade da Marinha em Cabo Frio mesmo.
Combinamos de ir nas Terça-feira seguinte. Foi uma viagem emocionante,
a subida ao farol, quarenta minutos de caminhada, era algo incomum em nossos
hábitos. Issac se divertia, pois eu temia os abismos que acompanhavam
o caminho como uma fera, ele brincava com meu medo.
Ao chegarmos, já havia um rapaz e uma moça, eram amigos.
Logo percebemos que se tratava de um homossexual. Ele era de uma
simpatia incrível, No primeiro momento percebi que havia uma grande
diferença em atenção do meu marido e aquele rapaz
que logo foi apelidado de Napoleao.
Preferi chama-lo de Napo, combinava com aquele rosto meigo, cabelos
finos e macios. A noite todos foram jogar baralho, como eu não
sabia e nem gostava de participar de jogo, ficava com Napo na sacada
do farol, que era um convite para uma conversa sincera e descontraída,
onde o cenário do mar bravio, chocando-se nas rochas, a luz
do farol girando e iluminando, como um caminho no mar, perdendo-se na imensidão
do horizonte misterioso.
Napo falava de tudo, eu o ouvia, fascinada pôr aquele homem que
diziam que não era homem, identificava-me com sua alma
de uma maneira eu antes nunca havia experimentado com meu marido.
Na manhã seguinte, todos nós fomos à pedra de
pescaria. Foi uma descida emocionante, a sensação de aventura
e a voz calma e alegre de Napo, ajudando-me na descida, enquanto Issac
nem se lembrava de meu medo, ele distraia-se com as outras pessoas, vibrava
com aquela nova experiência de pesca para o almoço.
A tarde foi calma, Issac foi dormir, os outros casais também,
na calma daquela ilha, o silencio era quebrado pelos urros das ondas que
pareciam querer destruir ilha.
E Issac logo adormeceu, levantei-me e fui à frente da casa e
permaneci na murada., visualizando o mar e envolvida pelo vento que me
abraçava carinhosamente. Ouvi aquela voz macia a me chamar. Olhei
para trás e Napo, carinhosamente segurou a ponta de meus cabelos.
Falamos de tudo que quisemos e o gigante enfurecido atacava as rochas,
invadia o abismo e soltava espumas que coloriam nos raios do sol, e, como
um gigante indomável, teimosamente insistia naquela luta, que passivamente
as rochas, imóveis pôr natureza, recebiam-no como um bom anfitrião,
suas garras monstruosas. Aquele cenário, o abismo era uma
mistura de beleza e mistério que me causava medo, e naquele cenário
eu peneirava todas as belezas, e nessa peneirada, Napo ficava em destaque,
ele me envolvia, me descontraia e fazia-me rir como nunca havia sorrido.
O sol foi se despedindo do dia, permitindo que o manto cinzento da
noite lentamente escurecia, misturando-se com o mar, o gigante enfurecido,
num mistério sensacional e permanecemos pôr longo tempo conversando.
Após o jantar todos foram jogar, e percebi que Napo me observava
de longe, como a me perguntar se eu iria para a murada do farol.
Sabia da necessidade que ele tinha de falar com alguém que o via
como um ser humano.
E o jogo iniciou na mesa, e, mecanicamente, Issac me beijou sem prestar
atenção em mim. Desculpando-se pôr não
poder ir cedo para a cama e tratou-me como se eu fosse uma menina, dizendo
que eu deveria ir conversar com “Napoleão”, mas insinuou ironicamente,
como se Napo fosse uma “coisa”; Napo estava na janela, e virou-se com um
olhar tímido e visivelmente magoado, e tentou levar na brincadeira.
Nesse momento, percebi o quanto Issac foi ferino e frio, e estranhei aquela
reação de Napo, pois, quando o conhecemos, ele levava as
insinuações e deboches na brincadeira. Obedeci Issac e chamei
Napo para o farol, que era bem em frente a casa onde estávamos hospedados.
Chegamos à murada e permanecemos longo tempo calados, fitávamos
o mar e a luz do farol que girava, tingindo as ondas de um amarelo dourado,
desafiando o gigante enfurecido; pôr um instante, fitei o perfil
daquele homem maravilhoso, seus cabelos esvoaçantes pareciam uma
névoa celeste, com a luz refletida do farol, Napo parecia
o Deus da beleza, e por que não dizer o Deus da pureza? Ele
sentiu meu olhar e virou-se para mim, a onda que me envolveu,
contagiou-o e percebi seus lábios trêmulos à
brisa macia daquela noite dançava com os gritos das rochas no abismo,
atacadas pelo gigantesco mar, e, lentamente, ele escorregou seus dedos
pela murada, tocando levemente os meus, e ficamos assim, um frente ao outro
envolvidos pôr uma excitação que jamais havia sentido
antes, ele murmurava palavras desconexas, mas sabia que era um misto de
amor e desespero e felicidade. Despertamos desse torpor quando alguém
ligou o som e a voz de Gilberto Gil nos saudou com uma mensagem de quem,
como só nós dois entendemos “um dia vivi a ilusão
que ser um homem bastaria...um mundo masculino...”
Iniciamos uma conversa sem sentido, a música ao longe nos obrigava
a uma comunicação mais profunda, e, de mãos dadas,
fomos nos afastando do farol e nas imensidão da noite, nossos gemidos
de amor, como um coro, na ventania, formava uma canção tão
linda, jamais ouvida pôr alguém que não amou como nós.
Nossos corpos fundido no abrasador calor, esfregados na relva escassa
da ilha, nossas mãos explorando pôr todo corpo, e o gigante
pareceu mais calmo, parecia amar as rochas e o abismo era um cenário
aveludado, únicas testemunhas de nossos corpos enlaçados
misturados de suor e satisfação.
Nessa cavalgada num misto de alegria e sensação, experimentamos
uma volúpia incontida, rasgamos nossos preconceitos, no ímpeto
de um desejo só, e juntos imergimos na grama, na areia misturada
de pedrinha, no galope até uma sinfonia de gemidos, murmúrios
de gozo, numa melodia triunfante e guerreira, afugentando e domando o gigante
que, diante aqueles doces gemidos ampliando num ritmo entrecortado de soluços
arfante de gemidos profundos nos saudava com uma calmaria que assustaria
os grandes navegadores. Afugentamos todos os fantasmas de nosso interior,
que, no abismo supremo do orgasmo, fugiram espavoridos em farrapos no céu
escancarada noite daquela ilha, saltando nas profundezas do abismo circundante,
e nossos corpos arfantes pela cavalgada incontida, descolam-se e para cada
extremo, caimos mirando as estrelas, testemunhas desconhecidas até
aquele momento.
Levantamo-nos, na caminhada para junto da casa, nossa ausência
não foi notada. Fui dormir, aquecida pela lembrança sentindo
o perfume doce de sexo feito com amor.
Foi nossa despedida, na manhã seguinte Issac ficou gripado e
tivemos que ir embora. Numas rápidas palavras ele mencionou o bairro
que morava Ipanema. Pedi o nome da rua, e Issac disse que tinha o endereço
dele, e, sem olhar para trás, eu senti o gosto do seu olhar a medir
a distância que ia nos separando e a cada passo que dávamos
na descida da ilha, no medo do abismo misterioso.
Voltamos a rotina de nossa vida. Meses se passaram, Issac era carinhoso,
e pensava até que o amava, mas, vez pr outra, eu era tomada
pela lembrança de Napo, e novamente uma onda acendia meu corpo,
sufocando-me e surgindo um desejo de voltar a vê-lo.
Dois anos depois, eu e o pessoal da faculdade tivemos que participar
de um seminário em um hotel em Ipanema. Ficamos hospedados num hotel,
longe de Issac, foi um experiência nova.
Na última noite do seminário, a turma combinou de assistirmos
um show de uma cantora que tocava violão. E como era o lugar mais
barato, topei e acompanhei os colegas.
Ao chegar à boate, o cartaz mostrava uma mulher maravilhosa,
com um violão, entramos, procurei sentar na primeira fileira de
cadeira. Ao iniciar o show o palco foi totalmente escurecido, a cortina
suspensa, e um foco de luz azulada banhava aquela mulher extravagantemente
pintada, o vilão sobre o colo, um sorriso falsamente alegre, agradecia
a platéia reduzida a umas poucas pessoas. Em minha mesa um lugar
vazio, alguém sentou, ao meu lado, não virei pra olhar, os
olhos da cantora passeavam pelas cadeiras vazias e pelas ocupadas,
e, num momento que não defini, seus olhos encontraram os meus, fitamo-nos,
num misto de alegria e decepção, vergonha e tristeza, o cenário
gigante cúmplice daquela encontro, onde a escuridão
do palco me fez lembrar as ondas que se debruçavam arremessadas
pelo mar na areia úmida da ilha, onde o abismo nunca foi tão
suave e ameno, senti um abismo abrigando um pavor num murmúrio
contrastante com o que eu sentia naquele instante, e a voz de Napo
cantando improvisadamente a música de Gilberto Gil. ...um
dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria... um mundo masculino...”
levantei, envolvida pela escuridão, e a voz de Napo se distanciando
cada vez mais e mergulhada na luz da cidade: o abismo.
Lira Vargas