PROSA DE TEMÁTICA GLS

ENTRE O CONFINAMENTO E A LIBERTAÇÃO

O projeto da DirecTV brasileira de lançar um canal de filmes no sistema pay-per-view para o público gay coloca em cena uma velha questão: é ou não pertinente criar nichos para públicos discriminados? Claro que o mercado terá razões para tanto, considerando a crescente visibilidade do segmento homossexual e sua descoberta enquanto consumidor privilegiado. Mas a questão política é outra: até onde essas segmentações, com aparência de conquistas, resultam numa implementação de guetos? Deve-se condená-los pura e simplesmente, ou os guetos poderão ser úteis, ao menos em casos de sobrevivência? Dentro de culturas hostis, historicamente a homossexualidade tendeu a viver clandestina. Mas não foram seus praticantes que escolheram as cavernas sociais e sim seus algozes, que a transformaram em pecado e perversão, exilada no território do proibido. Sociedades secretas, como os templários, significaram tentativas de criar guetos para escapar às perseguições.

Essa dicotomia vem à tona no atual debate político em torno de outros movimentos sociais, como no caso das ações afirmativas da população afro-brasileira. Para homossexuais, o gueto surge de modo indiretamente proporcional à visibilidade, grande bandeira política dos grupos ativistas. Mas há uma fronteira tênue entre o que é estratégico e o que é equivocado em relação ao gueto. Até onde vai a libertação e onde começa o confinamento? Não seria melhor que produções homossexuais se apresentassem em canais comuns, disponíveis a toda a população? Afinal, se homossexuais lutam para fazer parte da sociedade, nada mais justo que suas necessidades específicas sejam contempladas de modo aberto. No entanto, estamos longe de uma distribuição democrática da imagem televisiva, até fornecer reflexos positivos ao segmento homossexual. Avançando no debate, cabe a pergunta: a função libertadora dos movimentos sociais é apenas integrar-se?

Em outros termos, os grupos oprimidos visam conquistar um lugar ao sol dentro de uma sociedade injusta, ou pretendem interferir para melhorar essa sociedade, agregando-lhe novos referenciais críticos a partir da experiência das margens? A primeira alternativa, mais abrangente, tem um escopo mais conformista, enquanto a segunda, mais ambiciosa, pode estar no limiar do gueto. É verdade que um programa de TV exclusivo para homossexuais tem condições de abrir um espaço mais radical para a comunidade discriminada. Em contrapartida, é imenso o alcance provocador das duas personagens lésbicas da novela "Mulheres apaixonadas". Mas se existe a vantagem de atingir um público muito mais amplo, também corre-se o risco de falsear a realidade, para que ela corresponda às fantasias mais conservadoras. Assim, beijo entre duas mulheres, nem pensar. Uma transa, ainda que apenas sugerida, menos ainda. Nesse caso, homossexuais seriam obrigatoriamente celibatárias ou emasculados. Mais eis a perversidade mercadológica: um beijo homossexual seria encampado se conseguisse alto índice de ibope ou abrisse perspectivas de vender mais. Um exemplo foi o beijaço homossexual promovido no shopping Frei Caneca, em São Paulo, protestando contra o gesto dos seguranças locais de impedir um casal de homens de se beijar em público. Para neutralizar a manifestação promovida por grupos ativistas, a direção do Shopping transformou o protesto político em festa, com direito a banners comemorativos e DJs tocando, enquanto a liderança homossexual agradecia o "gesto de boa vontade", que não passou de tapa-boca marqueteiro. De fato, a lógica do mercado consegue estrangular nichos de resistência. Há pouco, a revista G Magazine, dirigida ao público homossexual masculino, quase encerrou as atividades, por problemas financeiros crônicos. Basicamente, ela não consegue anunciantes, que alegam correr o risco de queimar seus produtos ao aproximá-los de um veículo homossexual. Mais grave: muitas dessas empresas chegam ao ponto de criar anúncios específicos em revistas voltadas ao público homossexual, na Europa, Estados Unidos e Austrália. No Brasil, elas preferem não sujar sua imagem.

É certo que estamos falando do mercado, que abana a cauda para o melhor consumidor, valendo-se dos estereótipos mais conservadores. E os setores progressistas, sem compromisso com o consumo, como se comportam? Exemplo dos mais curiosos tem sido a reação da esquerda brasileira, dividida entre a condenação e a cooptação do ativismo homossexual. No Brasil, ao surgirem no final da década de 70, aqueles movimentos sociais não diretamente relacionados à luta de classes foram chamados pelos setores esquerdistas de "grupos de minorias" ou "luta menor", incluindo os segmentos de mulheres, negros, homossexuais, índios e lutas ambientais. Por que a implicação minoritária, nunca ficou muito claro, considerando que nessas circunstâncias o fator estatístico não é fácil de se aplicar. No caso mais extremo de homossexuais, como aferir estatísticas de um setor imerso na invisibilidade social? Na verdade, a referência minoritária tinha a ver mais com um enfoque ideológico, que mal disfarçava a minimização do problema: tratava-se de lutas secundárias, a serem travadas ao sabor da "luta maior" do proletariado. O tempo passou, as cores ideológicas desbotaram, mas a relação da esquerda com o movimento homossexual continuou oscilando entre descaso,

oportunismo e cooptação. Uma vez no poder, os partidos de esquerda vêm aprofundando o velho clientelismo do toma-lá-dá-cá. Aqui também, fazem-se promessas, mas uma vez conseguidos os votos, adeus compromissos. Além de se manter a política de minimização desses movimentos sociais, submetendo-os às prioridades do partido, agora o problema se aprofunda, pois vive-se em clima de chantagem. Como só alguns partidos de esquerda têm interesse nessas lutas, os movimentos sociais eleitoralmente mais "incômodos" correm o risco de se tornar seus reféns. No caso do segmento homossexual, que padece de desorganização política resultante de sua invisibilidade, o PT é que mais tem lutado por seus direitos. Isso não impede que, freqüentes vezes, o partido use essa instância oportunisticamente, quando precisa parecer moderno, para alavancar votos. O caso da prefeita de São Paulo é emblemático: guindada à condição de parlamentar mais avançada do país, graças à sua luta pelos direitos homossexuais, uma vez eleita para a prefeitura Marta Suplicy não estabeleceu nenhum canal de comunicação com essa parcela de cidadãos/ãs, menos ainda pensou em discutir e implantar políticas públicas homossexuais. Sinal dos tempos: muitas lideranças homossexuais petistas abdicaram de suas reivindicações, evitando criar embaraços ao partido. E entra em cena, de novo, a questão do gueto. Para defender a prefeita, essas lideranças fisiológicas alegam a inadequação de criar políticas homossexuais, pois "isso desembocaria no gueto" das minorias. Visam, ao contrário, acionar "políticas abrangentes para minorias" – esquecendo que o PT já implantou políticas segmentadas para negros, mulheres, índios, deficientes físicos, etc. Aliás, a volta ao termo "minoria" é significativa do esforço minimizador de sacrificar necessidades específicas de determinado segmento em nome das razões do partido. Eleitoralmente, não compensa voltar-se para a comunidade homossexual, quando isso criaria problemas com o eleitorado evangélico e católico do PT, estatisticamente mais rentável. Assim, caímos no velho problema do excesso de bajuladores nos palácios. Com o agravante de que agora a subserviência parte dos próprios oprimidos que deveriam defender suas necessidades. No limite, essa subserviência condena a comunidade homossexual à política da "luta menor", ampliando o gueto e reforçando uma cidadania de segunda classe, típica de sociedades reacionárias.

Ao contrário, deve-se estabelecer a diferença entre o gueto (como espaço de confinamento social) e a legítima segmentação (como forma de contemplar a complexidade das modernas democracias). Se os programas televisivos específicos para a população homossexual reforçam sua existência e auto-imagem, não se poderá falar em confinamento. Parece-me muito positivo que a indústria cultural esteja descobrindo que nem só de Romeu e Julieta vive o mundo do desejo.

João Silvério Trevisan

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