Joaquim Nabuco
Trecho de uma oração à sua memória  (*)

Ides entrar comigo no assunto desta oração cívica e piedosa com a mesma unção com que se visitam as catedrais antigas, onde os homens e o tempo foram deixando de sua passagem o atestado natural da obra imorredoura.
Os templos cristãos simbolizam a cristalização da fé na pedra imortal e majestosa, — a vida dum grande homem é a síntese eloqüente de todas as aspirações e de todos os sonhos generosos do seu tempo.
A catedral é a floresta das primeiras épocas do cristianismo transformada em mármore e granito pela vitória da crença com o advento da Idade Média: é a floresta onde os troncos das árvores seculares se fazem colunas rendilhadas, — onde a clareira ensombrada pelas frondes se faz a nave solene, — onde o conjunto da folhagem nos cimos altaneiros se torna a abóbada afoita que deixa, como os intervalos das folhas, passar a luz do sol pelas entreabertas da construção.
As pujanças da natureza são imitadas pelas audácias do homem e se aquela ergue para o cimo os caules vertiginosos dos álamos e dos pinheiros, o arquiteto — passando ousadamente da galeria para o cintro e do cintro para a ogiva — eleva para o céu, como se elevasse a sua alma, o arrojo dos campanários.
Nem lhe faltam — a essa esplêndida selva — os tufos de folhagem dos acantos, os arbustos graciosos das colunetas e os ramos que atravessam os ares como pontes, — os arcobotantes atrevidos.
Nem se lhe ausentam os cardos, as urtigas, os espinhos e as rosas entressachando pelos galhos brancos dos contrafortes, trepando e florindo pela superfície dos troncos, perdendo-se no alto numa inflorescência opulenta.
Nem a vida animal, múltipla, variada e caprichosa lhe falece: correm serpentes fantásticas, precipitam-se hiantes estriges fabulosas, iminem, suspensos da sombra dem6onios hediondos...
E a catedral palpita de vida, estremece de sons, reboa de harmonias, quando o carrilhão — voz de bronze dos séculos — e o órgão — voz cristalina da fé — congregam gentes e concentram almas dentro do bojo misterioso da floresta.
Vós todos vistes esta catedral quando se erguia sobre os seus alicerces profundos e robustos — o talento que era o arcabouço e o caráter que era a argamassa — viste-la quando se erguia do seu plano geral desenhado no solo do patriotismo, tendo, como todos os planos das igrejas, a forma de uma cruz deitada — a cruz da redenção dos cativos.
A elevação gradual e simultânea dos muros desse templo foi constantemente a obra do soerguimento dessa cruz onerosa acima do terreno da Pátria; a cruz acompanhou o modelo do edifício, mantendo-o paralelamente à sua secção horizontal, norteada para os quatro ventos do Brasil e oferecendo-se à luz meridiana em toda a extensão de sua haste e em todo o comprimento dos seus braços.
Vistes esta catedral gigante, quando chegara à altura da rosaça, e o símbolo do seu desenho já se armava de louros e de rosas; viste-la erguer-se ainda em nome do patriotismo e abrir-se em janelas que diziam para todos os pontos do território nacional, para deixar que lhe entrassem no recinto os lamentos dos oprimidos e que dele saíssem, como o incenso dos ritos, os sonhos da federação.
E, mais tarde, quando a abóbada completando a sua marcha curviforme se cerrou com a chave solene da experiência, vistes ainda a catedral
soberba receber no seu seio e abrigar sob o seu teto as mais vastas esperanças da família americana.
Senhores.
Não há perigo de nos perdermos percorrendo este monumento que foi a vida de Joaquim Nabuco: não é um labirinto o que temos em frente, não é um Vaticano erguido trecho a trecho pelas necessidades das épocas.
É um conjunto uníssono e harmônico; aí as partes são proporcionadas ao todo; nenhuma delas destoa, nenhuma se emaranha com a outra, nem se sobrepõe às demais: não há recantos, nem galerias estreitas, não há sinuosidades de passagem, nem corredores obscuros.
Não: tudo é amplo, espaçoso, iluminado e compreensível; tudo é lógico e justo; e só não é monotonamente retilíneo aquilo que a arte exigiu tivesse a graça das linhas curvas e a estética dos contornos suaves — a poesia.
Não. O receio é outro: o perigo que nos antolha, o perigo que me fez muito tempo hesitar antes de acolher esta pesada incumbência, é o de não termos tempo de percorrer juntos esta vida tão larga nas suas manifestações, tão grande nas suas obras, tão profunda e tão alta nos seus fitos e nos seus resultados.
Em face desta epopéia que recorda menos os rudes heróis de Homero do que os tenazes navegadores do século XV, o sentimento que nos assalta é o pasmo ao ver consubstanciada numa existência a atividade inteira de uma geração.

Que rajada de estro não fora necessária para seguir com o pensamento e trasladar para o papel frio e para a palavra sempre mesquinha e curta — a marcha para o azul daquela basílica moral, desde a opção do terreno e o traçado dos fundamentos até o bater da última cavilha pela mão inevitável da morte! “O traço todo da vida, disse Joaquim Nabuco, é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, e ao qual este terá sempre que se cingir sem o saber...” Esse traço de que ele nos fala — as primeiras impressões da sua infância num engenho de Pernambuco — é o delineamento do edifício que ele veio construindo através de sua vida memorável.
O terreno onde esse traço correu e se firmou contém uma singela paisagem da terra pernambucana: foi ali que se passaram os oito primeiros anos de Nabuco.
Fora preciso ver para sentir toda a poesia amena que é capaz de inspirar esse recanto verde da terra brasileira, em plena época de escravidão e rotina, de costumes patriarcais e de imprevidência generosa.
É a casa-grande, a casa de vivenda do senhor ladeada pela senzala dos escravos; é o pasto ladeiroso, — o cercado, — onde mugem os pacatos bois sonolentos; é a planície verde-clara anediada pelo terral, onde pompéia a plantação embastida, que se perde no além; é o renque tortuoso dos ingazeiros, pendidos como chorões à beira do Ipojuca...
Não se transmitem, sentem-se impressões como esta.
Há nas memórias da infância tantas imagens subjetivas e próprias, tantos sons e ruídos peculiares, tantos perfumes de que não se sabe a origem, que não é do domínio da arte humana reproduzi-los para gozo alheio...
Mas essas cores, essas melodias, essas fragrâncias vivem perenes em nós; esse inconsciente fica sendo para o futuro o consciente da nossa existência; é o molde em que se funde o nosso eu moral, e que persiste no correr dos nossos anos, cada vez mais nítido e acentuado.
Aquela infância passada entre os carinhos de uma velha e santa senhora e o contato afetivo dos escravos e dos pescadores, — adentro dum horizonte largo, límpido e sempre o mesmo, é a imagem que revive na lembrança de
Nabuco, em todos os períodos de sua vida.
Esta vida também teve sempre os carinhos interiores do seu santo ideal, também foi afetiva como a raça que ele libertou; também foi larga, límpida e sempre igual a si mesma, porque nunca deixou de ser fiel à pureza do seu sonho de artista e ao seu ardor de patriota.
A pequena capela de massangana fica sendo destarte a maquete da catedral cuja estrutura devia crescer e avultar no transcurso daquele viver profícuo.
Diante da criança aí estava o modelo: rude, primitivo na sua arquitetura, com as suas paredes grosseiramente branqueadas, mas puras de toda a mácula, com o seu pequeno sino que se esforçava por ser solene ao tanger as Trindades;  com os seus fiéis humildes — servos e praieiros
— como que ensaiando nesse teatro modesto as figuras dos opressos e dos fracos que haviam de povoar futuramente as noites do homem feito.
A catástrofe — porque não há período de vida sem alguma — sobreveio na passagem daquele escravo que lhe pediu proteção contra um senhor mau; sobreveio na morte de sua querida mãe adotiva; no seu apartamento dos lugares dos seus primeiros anos, “a cortina preta que separa do resto da sua vida a cena da sua infância”, nos diz ele. A natureza ambiente, a educação religiosa, as cenas da escravidão que se representavam reais em seu redor, tudo concorreu para impor-lhe essa missão redentora, que é o seu mais belo título de glória.
“Nada mostra melhor do que a própria escravidão, diz ele, o poder das primeiras vibrações do sentimento...”
As primeiras vibrações do sentimento! Mas ele nunca as deixou de sentir, essas vibrações. A visão rápida, fugaz da primeira onda que se lhe ergueu diante dos olhos fica-lhe sendo a imagem definitiva do mar, todas as vezes que lhe vem a idéia do oceano.
Quaisquer leituras, quaisquer acessões que lhe enriqueçam o espírito, todos os cabedais que mais tarde lhe opulentem e integrem o coração e a inteligência.
É assim que a escravidão — o inimigo irreconciliável que ele combateu e repeliu e exterminou com todas as forças da natureza e da cultura, — anos mais longe lhe faz saudades, lhe inspira uma nostalgia singular.
“A saudade do escravo”, a saudade que ele sente é um aspecto dessa imagem infantil que se lhe perpetua na retina com as tintas vivas do cenário primitivo do Brasil laborioso. A impressão é a do contato entre o homem e a terra; o homem curvado para o solo a dar-lhe com as bagas do suor, com as lágrimas do cativeiro, com o sangue do sacrifício, tudo o que ela poderia tomar-lhe — a força muscular que ele sabe possuir e a liberdade, de que não tem consciência; e a terra, boa, fecunda, verdejante e risonha, amoldando-se às necessidades do homem, afeiçoando-se, como a argila plástica, às formas esculturais das produções opimas, eresolvendo-se em rebentos, em folhas, em frutos, em méis dulcíssimos, em cristais preciosos...
Julgaríeis que aquele mel, como o do Himeto, encerrasse as inspirações do aticismo e que o infante sequioso descobrira alguma Hipocrene escondida, capaz de instilar-se na inteligência as riquezas da imaginativa e os dons da elocução, que ulteriormente fizeram dele um dos maiores oradores brasileiros.
Não vos iludais, senhores. A paisagem da “mata” pernambucana é pobre de arrojadas inspirações: a planície e a várzea são os seus traços característicos: a suavidade da natureza convida antes ao lirismo do que à epopéia: o verde-claro dos canaviais dá-nos a impressão de mares bonançosos que se não altera, mas apenas ondulam sob o afago das virações.
A terra não se cava em abismos profundos nem se atormenta em montanhas inacessíveis. Era necessário ao completo evolver da águia implume um surto que a levasse mais próxima do sol, que a impelisse para os cimos alcantilados, donde ela pudesse desferir, depois de mais amplo descortino, o grito do combate e o vôo da conquista.
Os cenários onde se desenrolou esse começo de expansão para as grandes idéias e para os grandes sentimentos não os preciso descrever: os três centros intelectuais que foram o domicílio de Nabuco durante os seus ensaios políticos e literários: o Rio, São Paulo e Recife.
Os aspectos diversos das três capitais brasileiras devem ter influído no ânimo observador do jovem estudioso; nem se lhes pode negar o influxo de terem inspirado ao estreante, respectivamente: a ambição política de vir a figurar nas bancadas legislativas ou nos conselhos do governo; o espírito de independência e rebeldia com que se assinalou entre os combatentes da geração acadêmica; e o seu republicanismo a Laboulaye, que o tornou americanista e inimigo da Câmara dos Lordes, sonhador e emancipado, como eram todos ou quase todos os que freqüentavam nessa quadra a Escola do Recife.
Já nessa época, o cérebro de Nabuco era o de um pensador e esteta: as suas leituras variadas não as fazia ele passar à superfície da lama como asas de gaivotas sobre as ondas, senão como o arado que deixa sulcos profundos no seio da terra.
As fisionomias de escritores ou de artistas, os exemplos dos homens políticos, a doutrinados livros e dos jornais, — tudo isso não são visões que perpassam: são imagens que se decalcam, que lavram o seio daquele terreno virgem, ávido de assimilar e produzir, e que depositam a semente do futuro na uberdade que será depois a árvore frondosa do saber.

Carlos da Costa Ferreira Pôrto Carreiro

Do livro: "Nova Antologia Brasileira", F. Briguiet & Cia. Editores, 1961, RJ
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(*) 1910.

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