Ides entrar comigo no assunto desta oração cívica
e piedosa com a mesma unção com que se visitam as catedrais
antigas, onde os homens e o tempo foram deixando de sua passagem o atestado
natural da obra imorredoura.
Os templos cristãos simbolizam a cristalização
da fé na pedra imortal e majestosa, a vida dum grande homem é
a síntese eloqüente de todas as aspirações e
de todos os sonhos generosos do seu tempo.
A catedral é a floresta das primeiras épocas do cristianismo
transformada em mármore e granito pela vitória da crença
com o advento da Idade Média: é a floresta onde os troncos
das árvores seculares se fazem colunas rendilhadas, onde a clareira
ensombrada pelas frondes se faz a nave solene, onde o conjunto da folhagem
nos cimos altaneiros se torna a abóbada afoita que deixa, como os
intervalos das folhas, passar a luz do sol pelas entreabertas da construção.
As pujanças da natureza são imitadas pelas audácias
do homem e se aquela ergue para o cimo os caules vertiginosos dos álamos
e dos pinheiros, o arquiteto passando ousadamente da galeria para o cintro
e do cintro para a ogiva eleva para o céu, como se elevasse a
sua alma, o arrojo dos campanários.
Nem lhe faltam a essa esplêndida selva os tufos de folhagem
dos acantos, os arbustos graciosos das colunetas e os ramos que atravessam
os ares como pontes, os arcobotantes atrevidos.
Nem se lhe ausentam os cardos, as urtigas, os espinhos e as rosas entressachando
pelos galhos brancos dos contrafortes, trepando e florindo pela superfície
dos troncos, perdendo-se no alto numa inflorescência opulenta.
Nem a vida animal, múltipla, variada e caprichosa lhe falece:
correm serpentes fantásticas, precipitam-se hiantes estriges fabulosas,
iminem, suspensos da sombra dem6onios hediondos...
E a catedral palpita de vida, estremece de sons, reboa de harmonias,
quando o carrilhão voz de bronze dos séculos e o órgão
voz cristalina da fé congregam gentes e concentram almas dentro
do bojo misterioso da floresta.
Vós todos vistes esta catedral quando se erguia sobre os seus
alicerces profundos e robustos o talento que era o arcabouço e
o caráter que era a argamassa viste-la quando se erguia do seu
plano geral desenhado no solo do patriotismo, tendo, como todos os planos
das igrejas, a forma de uma cruz deitada a cruz da redenção
dos cativos.
A elevação gradual e simultânea dos muros desse
templo foi constantemente a obra do soerguimento dessa cruz onerosa acima
do terreno da Pátria; a cruz acompanhou o modelo do edifício,
mantendo-o paralelamente à sua secção horizontal,
norteada para os quatro ventos do Brasil e oferecendo-se à luz meridiana
em toda a extensão de sua haste e em todo o comprimento dos seus
braços.
Vistes esta catedral gigante, quando chegara à altura da rosaça,
e o símbolo do seu desenho já se armava de louros e de rosas;
viste-la erguer-se ainda em nome do patriotismo e abrir-se em janelas que
diziam para todos os pontos do território nacional, para deixar
que lhe entrassem no recinto os lamentos dos oprimidos e que dele saíssem,
como o incenso dos ritos, os sonhos da federação.
E, mais tarde, quando a abóbada completando a sua marcha curviforme
se cerrou com a chave solene da experiência, vistes ainda a catedral
soberba receber no seu seio e abrigar sob o seu teto as mais vastas
esperanças da família americana.
Senhores.
Não há perigo de nos perdermos percorrendo este monumento
que foi a vida de Joaquim Nabuco: não é um labirinto o que
temos em frente, não é um Vaticano erguido trecho a trecho
pelas necessidades das épocas.
É um conjunto uníssono e harmônico; aí as
partes são proporcionadas ao todo; nenhuma delas destoa, nenhuma
se emaranha com a outra, nem se sobrepõe às demais: não
há recantos, nem galerias estreitas, não há sinuosidades
de passagem, nem corredores obscuros.
Não: tudo é amplo, espaçoso, iluminado e compreensível;
tudo é lógico e justo; e só não é monotonamente
retilíneo aquilo que a arte exigiu tivesse a graça das linhas
curvas e a estética dos contornos suaves a poesia.
Não. O receio é outro: o perigo que nos antolha, o perigo
que me fez muito tempo hesitar antes de acolher esta pesada incumbência,
é o de não termos tempo de percorrer juntos esta vida tão
larga nas suas manifestações, tão grande nas suas
obras, tão profunda e tão alta nos seus fitos e nos seus
resultados.
Em face desta epopéia que recorda menos os rudes heróis
de Homero do que os tenazes navegadores do século XV, o sentimento
que nos assalta é o pasmo ao ver consubstanciada numa existência
a atividade inteira de uma geração.
Que rajada de estro não fora necessária para seguir com
o pensamento e trasladar para o papel frio e para a palavra sempre mesquinha
e curta a marcha para o azul daquela basílica moral, desde a opção
do terreno e o traçado dos fundamentos até o bater da última
cavilha pela mão inevitável da morte! O traço todo
da vida, disse Joaquim Nabuco, é para muitos um desenho da criança
esquecido pelo homem, e ao qual este terá sempre que se cingir sem
o saber... Esse traço de que ele nos fala as primeiras impressões
da sua infância num engenho de Pernambuco é o delineamento
do edifício que ele veio construindo através de sua vida
memorável.
O terreno onde esse traço correu e se firmou contém uma
singela paisagem da terra pernambucana: foi ali que se passaram os oito
primeiros anos de Nabuco.
Fora preciso ver para sentir toda a poesia amena que é capaz
de inspirar esse recanto verde da terra brasileira, em plena época
de escravidão e rotina, de costumes patriarcais e de imprevidência
generosa.
É a casa-grande, a casa de vivenda do senhor ladeada pela senzala
dos escravos; é o pasto ladeiroso, o cercado, onde mugem os
pacatos bois sonolentos; é a planície verde-clara anediada
pelo terral, onde pompéia a plantação embastida, que
se perde no além; é o renque tortuoso dos ingazeiros, pendidos
como chorões à beira do Ipojuca...
Não se transmitem, sentem-se impressões como esta.
Há nas memórias da infância tantas imagens subjetivas
e próprias, tantos sons e ruídos peculiares, tantos perfumes
de que não se sabe a origem, que não é do domínio
da arte humana reproduzi-los para gozo alheio...
Mas essas cores, essas melodias, essas fragrâncias vivem perenes
em nós; esse inconsciente fica sendo para o futuro o consciente
da nossa existência; é o molde em que se funde o nosso eu
moral, e que persiste no correr dos nossos anos, cada vez mais nítido
e acentuado.
Aquela infância passada entre os carinhos de uma velha e santa
senhora e o contato afetivo dos escravos e dos pescadores, adentro dum
horizonte largo, límpido e sempre o mesmo, é a imagem que
revive na lembrança de
Nabuco, em todos os períodos de sua vida.
Esta vida também teve sempre os carinhos interiores do seu santo
ideal, também foi afetiva como a raça que ele libertou; também
foi larga, límpida e sempre igual a si mesma, porque nunca deixou
de ser fiel à pureza do seu sonho de artista e ao seu ardor de patriota.
A pequena capela de massangana fica sendo destarte a maquete da catedral
cuja estrutura devia crescer e avultar no transcurso daquele viver profícuo.
Diante da criança aí estava o modelo: rude, primitivo
na sua arquitetura, com as suas paredes grosseiramente branqueadas, mas
puras de toda a mácula, com o seu pequeno sino que se esforçava
por ser solene ao tanger as Trindades; com os seus fiéis humildes
servos e praieiros
como que ensaiando nesse teatro modesto as figuras dos opressos e
dos fracos que haviam de povoar futuramente as noites do homem feito.
A catástrofe porque não há período de
vida sem alguma sobreveio na passagem daquele escravo que lhe pediu proteção
contra um senhor mau; sobreveio na morte de sua querida mãe adotiva;
no seu apartamento dos lugares dos seus primeiros anos, a cortina preta
que separa do resto da sua vida a cena da sua infância, nos diz
ele. A natureza ambiente, a educação religiosa, as cenas
da escravidão que se representavam reais em seu redor, tudo concorreu
para impor-lhe essa missão redentora, que é o seu mais belo
título de glória.
Nada mostra melhor do que a própria escravidão, diz
ele, o poder das primeiras vibrações do sentimento...
As primeiras vibrações do sentimento! Mas ele nunca as
deixou de sentir, essas vibrações. A visão rápida,
fugaz da primeira onda que se lhe ergueu diante dos olhos fica-lhe sendo
a imagem definitiva do mar, todas as vezes que lhe vem a idéia do
oceano.
Quaisquer leituras, quaisquer acessões que lhe enriqueçam
o espírito, todos os cabedais que mais tarde lhe opulentem e integrem
o coração e a inteligência.
É assim que a escravidão o inimigo irreconciliável
que ele combateu e repeliu e exterminou com todas as forças da natureza
e da cultura, anos mais longe lhe faz saudades, lhe inspira uma nostalgia
singular.
A saudade do escravo, a saudade que ele sente é um aspecto
dessa imagem infantil que se lhe perpetua na retina com as tintas vivas
do cenário primitivo do Brasil laborioso. A impressão é
a do contato entre o homem e a terra; o homem curvado para o solo a dar-lhe
com as bagas do suor, com as lágrimas do cativeiro, com o sangue
do sacrifício, tudo o que ela poderia tomar-lhe a força
muscular que ele sabe possuir e a liberdade, de que não tem consciência;
e a terra, boa, fecunda, verdejante e risonha, amoldando-se às necessidades
do homem, afeiçoando-se, como a argila plástica, às
formas esculturais das produções opimas, eresolvendo-se em
rebentos, em folhas, em frutos, em méis dulcíssimos, em cristais
preciosos...
Julgaríeis que aquele mel, como o do Himeto, encerrasse as inspirações
do aticismo e que o infante sequioso descobrira alguma Hipocrene escondida,
capaz de instilar-se na inteligência as riquezas da imaginativa e
os dons da elocução, que ulteriormente fizeram dele um dos
maiores oradores brasileiros.
Não vos iludais, senhores. A paisagem da mata pernambucana
é pobre de arrojadas inspirações: a planície
e a várzea são os seus traços característicos:
a suavidade da natureza convida antes ao lirismo do que à epopéia:
o verde-claro dos canaviais dá-nos a impressão de mares bonançosos
que se não altera, mas apenas ondulam sob o afago das virações.
A terra não se cava em abismos profundos nem se atormenta em
montanhas inacessíveis. Era necessário ao completo evolver
da águia implume um surto que a levasse mais próxima do sol,
que a impelisse para os cimos alcantilados, donde ela pudesse desferir,
depois de mais amplo
descortino, o grito do combate e o vôo da conquista.
Os cenários onde se desenrolou esse começo de expansão
para as grandes idéias e para os grandes sentimentos não
os preciso descrever: os três centros intelectuais que foram o domicílio
de Nabuco durante os seus ensaios políticos e literários:
o Rio, São Paulo e Recife.
Os aspectos diversos das três capitais brasileiras devem ter
influído no ânimo observador do jovem estudioso; nem se lhes
pode negar o influxo de terem inspirado ao estreante, respectivamente:
a ambição política de vir a figurar nas bancadas legislativas
ou nos conselhos do governo; o espírito de independência e
rebeldia com que se assinalou entre os combatentes da geração
acadêmica; e o seu republicanismo a Laboulaye, que o tornou americanista
e inimigo da Câmara dos Lordes, sonhador e emancipado, como eram
todos ou quase todos os que freqüentavam nessa quadra a Escola do
Recife.
Já nessa época, o cérebro de Nabuco era o de um
pensador e esteta: as suas leituras variadas não as fazia ele passar
à superfície da lama como asas de gaivotas sobre as ondas,
senão como o arado que deixa sulcos profundos no seio da terra.
As fisionomias de escritores ou de artistas, os exemplos dos homens
políticos, a doutrinados livros e dos jornais, tudo isso não
são visões que perpassam: são imagens que se decalcam,
que lavram o seio daquele terreno virgem, ávido de assimilar e produzir,
e que depositam a semente do futuro na uberdade que será depois
a árvore frondosa do saber.
Carlos da Costa Ferreira Pôrto Carreiro
Do livro: "Nova Antologia Brasileira", F. Briguiet &
Cia. Editores, 1961, RJ
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(*) 1910.