Pelo muito que Newton Navarro Bilro (1928-1992) representou e significa para Natal e para o Rio Grande do Norte, era para termos o seu nome sempre evocado e a sua obra, vasta e exuberante, permanentemente espicaçada, para se fazer presente nos corações e mentes da cidade que ele tanto amou, com ondas de irradiação para o interior do Estado, terra inóspita, pouco instigada para dar resposta e retroalimentação a provocações da capital, num circuito que poderia ser nutrido, mas que se mantém igualmente no "fome zero" da indigência.
Por sua presença indelével, muito especialmente para o segmento dos habitantes ilustrados de Natal, enfim, a chamada elite e sua vanguarda possível, essa minoria – que entrou nos "enta", 40, 50, 60 anos e mais – e que detém o prestígio e o domínio sobre o vasto grupo social que vive a pão e água nas franjas do perverso sistema social montado na capital, é até ridículo, para não dizer vergonhoso e grotesco, o estratagema de negacear, de forma sistemática, oportunidades para que se produzam eventos que resgatem e promovam, como de direito, a vida e a obra navarreanas.
Haveremos de aguardar que surjam, de fora dos gabinetes das esferas oficiais, ciosas de um pudor de vidro, que não suportariam mesmo uma leve auditagem, manifestações que componham e instituam um calendário de celebrações, com os festejos acontecendo, anualmente, seja no dia em que Navarro veio ao mundo, 8 de outubro, ou de seu encantamento, 17 de março.
Talvez se encontre explicações no fato de Natal ser uma cidade que ainda hoje camufla suas preferências sexuais pouco ortodoxas sob o manto protetor dos chamados "rituais do cargo", enquanto Navarro despedaçava essa crosta de dissimulação, ao permitir o acesso da provinciana urbe ao exercício pleno de seus direitos ao prazer incondicional nos seus estados afetivos de caráter pansexual. Neste sentido, há seu testemunho ao programa Memória Viva, gravado pela TV-U, nos anos 80: "Creio que pouca gente na minha geração participou e viveu tão dimensionalmente, em todo o sentido humano, a Ribeira, quanto eu. Porque me amaram barcaceiros, trapeiros, andarilhos, mendigos, franciscanos que não precisavam mais mendigar, porque já estavam muito perto do ouro de Assis, que é o reino de São Francisco", completando o striptease com o desnudamento de laços afetivos que contemplavam igualmente o reino animal, enaltecendo "a amizade até de uma cachorra vadia, chamada Aparecida , personagem do meu livro ‘Beira Rio’".
Dotado de uma sensibilidade torrencial, carregada de empatia e ternura, que extravasava nas práticas e fruições das belas-artes, Navarro recorria a Recife, para dessedentar seus anseios do belo e escafeder-se da asfixia imposta pela mediocracia local. Leitor de André Malraux, primeiro intelectual natalense a ler os autores ingleses, o artista iria arregaçar e adiantar muitos anos o crescimento das artes ao introduzir o modernismo nas artes plásticas natalenses, sendo ainda o fundador da primeira escola de arte infantil do Estado.
Seria um oportuno exercício de memória, prestando-se um tributo a quem deu tudo de si pela província matrona. Desde a sua própria pessoa física, sua carreira profissional, como um dos maiores gênios das artes plásticas potiguares, assim como pela insinuação, queiram ou não os que não admitem o sucesso e o prestígio que o artista gozou no coração dos que puderam acessar e lhe conhecem o acervo. A presença do artista é mais do que ensurdecedora, seja na dramaturgia, na poesia, nas crônicas de costumes, no jornalismo, nas artes plásticas.
Rebelde e dotado de significativa carga subversiva, que exercitava amiúde – talvez a razão básica da resistência à institucionalização da sua memória –, se permitiria às novas gerações pudessem evocá-lo nas mesas brancas e terreiros, ou nas mais singelas mesas de bares que inundam becos e vielas da cidade – ele concederia, sim, já que era um cultor e promoter da cultura genuinamente popular.
Newton Navarro Bilro nasceu em Natal, a 08 de outubro, sendo um produtivo e inspirado pintor e desenhista, jornalista, poeta, orador, com trabalhos literários publicados nos mais diversos jornais e suplementos de Natal e de outras cidades brasileiras. Entre livros de poesias e de peças, publicou "Subúrbio do Silêncio"(1953), "O Solitário Vento do Verão" (1961), "Os Mortos são Estrangeiros" (1970), "Beira Rio" (1970), "30 Crônicas não Selecionadas", "De Como se Perdeu o Gajeiro Curió" (1978) e "O Palhaço", entre outras.
Newton chegou também a escrever e compor algumas canções populares, como a que escreveu na praia de Redinha, em junho de 1964, uma toada da paçoca no velho ritmo de "bater caçula", "sacando a carne e a farinha com cebola vermelha, nas batidas alternadas das mãos sapientes, mantendo contemporânea uma solução brasileira do século XVI".
No campo da preservação de sua memória, registram-se duas tentativas, surgidas do amor de verdadeiros amigos: uma delas bem-sucedida, a outra a aguardar, ainda, melhores dias, quiçá a TPM de uma vontade política extemporânea, prodigalidade e desprendimento dos que comandam a Casa Grande em Natal. No último aspecto, trata-se de um pedido feito à Prefeitura pelo deputado federal Ney Lopes de Souza, conforme ele revelou no O Poti de 09.09.2001, para que a ex-futura ponte sobre o rio Potengi seja denominada "Newton Navarro", tendo como justificativa ser uma "homenagem a tudo que as suas crônicas, pinturas, desenhos e poemas significaram para a nossa arte e cultura, especialmente sublimando a beleza de Natal, do rio Potengi e da Redinha", conforme escreveu o parlamentar.
A outra manifestação, vitoriosa, é de autoria do jovem catedrático Vicente Vitoriano, professor do Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), artista plástico e, portanto, camarada de Navarro nas lides de arrancar beleza das brutalidades cotidianas e expô-las com tintas e telas. Vitoriano defendeu no ano passado a tese de doutorado "José Newton Navarro - Um Flâneur em Direção da Arte e da Pedagogia da Arte no RN". O estudo trata, principalmente, de Newton Navarro enquanto professor de arte e fundador da Escolinha de Arte Cândido Portinari, hoje Escola de Arte Newton Navarro.
A viúva do artista, Salete Navarro vem de dedicar-se sistematicamente a uma luta solitária para preservar a memória do artista, tendo fundado a Casa de Cultura Newton Navarro, mas sem receber qualquer apoio. Salete disse ao Diário de Natal (Muito de 18.03.04): "Consegui aprovar o projeto através das leis de incentivo, mas não consegui nenhuma empresa para patrocinar. A situação está muito difícil, antes ainda conseguia fazer exposições nos aniversários de morte e de nascimento dele, mas agora não tenho mais condições. Não estou podendo fazer nada", afirmou emocionada. Mesmo atravessando dificuldades, Salete se esforça para manter viva a memória de Newton Navarro. Na sua casa ela preserva a obra do artista. ‘"Ele foi um nome importante para várias áreas da cultura do Estado. Deu impulso a tudo, deu início a tanta coisa, como a escola infantil de artes plásticas Cândido Portinari. Foi o introdutor da arte moderna no Rio Grande do Norte, também colaborou para a literatura, foi um grande orador e incentivou outros artistas, dando apoio a quem o procurava e também a quem não o procurava. Foi um nome de muita importância", frisa.
Paulo Augusto