Vieira é brasileiro. Veio com 6 anos de idade, aqui se fez, aqui
aprendeu. Do seu extraordinário saber se conclui que a educação
no Brasil em 1600 era melhor do que hoje. Estudou ele no Colégio
da Companhia de Jesus da Bahia, só conheceu Portugal com trinta
e tantos anos. Vieira brasileiro, sim. Falava com sotaque brasileiro, usava
modismos de linguagem do Brasil, visitou o país, foi até
ao Amazonas. Com Gregório de Matos, ele é o gênio do
nosso barroco. Não se zanguem os portugueses. Temos vários
leitores portugueses que lêem nossas crônicas de sábado.
Estão na lista. Gentilíssimos. O que os portugueses podem
advogar contra o "nosso" Vieira é o nosso descaso. O descaso
do Brasil com seus mitos.
Um dia, estava no apartamento do Senhor X, famoso escritor, jornalista
e político maranhense. Via-se que era homem rico, de tradicional
família de políticos. Estávamos numa daquelas intermináveis
reuniões de esquerda. Presentes ali lideranças políticas,
representantes da "sociedade civil" (como se dizia na época),
músicos, artistas plásticos, escritores. O apartamento do
Senhor X, amplo, ricamente decorado, frente para o mar, ocupava vastamente
o andar inteiro da Av. Atlântica. Grande salão, onde
estávamos, ao fundo majestosa, imensa biblioteca. As discussões
entraram pela madrugada. Eu me enfadei, bocejava, palavras, palavras: estávamos
ainda no regime militar. Sempre me canso em situações
daquelas. As lideranças se entrechocavam. Orgulhosas e brilhantes.
Onde há muitos líderes, o embate é certo. Na época
ainda acreditava que somente a "revolução" podia mudar
alguma coisa. Era algo mítico, heróico: eu, que não
matava um inseto, sonhava com revolução branca, pacífica,
democrática. Pelo voto! Então, uma coisa me intrigou: como
aquele homem, o Senhor X., que era sólido intelectual respeitável,
podia ostentar, em suas paredes, somente reproduções em papel
de famosos quadros da pintura nacional, como Volpi, Djanira e Di
Cavalcanti? Intrigado, levantei-me e fui por o nariz nos quadros e vi,
terrificado, que as telas eram mesmo verdadeiras. Aquelas paredes valiam
um museu! Fui examinando um a um os quadros, espantado de emoção.
Pinturas famosas, que todo mundo conhece, pois estão nos livros
de arte. De repente, pressinto que havia alguém atrás de
mim. Era o Senhor X.
— Mas o que tenho de mais valioso, disse-me ele, não está
aqui. Venha ver.
E pegando-me autoritariamente pelo braço me conduziu por uma
série de salas e corredores do apartamento até um gabinete
de trabalho, relativamente pequeno. Na parede havia uma peça
de madeira trabalhada em altos-relevos, com motivos religiosos, galhos,
folhas e frutos.
— Sabe o que é isto? perguntou ele.
— Não sei, respondi eu.
— Isto é o que sobrou da porta da Igreja da Companhia de Jesus,
no Maranhão, onde o Padre Vieira pregou durante vários anos.
A Igreja foi demolida!
Rogel Samuel