Os 60 barulhos do Lema

Estivesse vivo, hoje, 24 de agosto, o poeta curitibano Paulo Leminski faria 60 anos. Não sei por onde dizer, nem os porquês de dizer, ainda, algo ou o quê. Como tudo já dito, tudo já desgastado sobre o velho Lema, ou como neste momento tudo esteja sendo dito à revelia do tempo e apenas pela efeméride, pela festa de uma sobrevida chamada linguagem. E aí, por causa disso, e muito, me ponho nela, na festa, sem convite, mas me ponho. E faço questão. Também porque Leminski era o cara. Nada mais que isso. O cara que tomou como senso do perene o seu contrário: não permanecer. E isso pode parecer um fardo, um ato de morte, mas ser o cara significa saber que ''de morrer ninguém tem experiência'' e ''que morrer não é tudo nesta vida''.

Andar pelas ruas de uma bonita Curitiba, subir e descer a rua XV, tomar um regalo de cerveja escura no centro, enfiar o juízo num café qualquer, acender a fantasmagoria e dar de ombros com o quanto Curitiba, de tão aberta, não se abre ao inesperado. Mas é acolhedora, mesmo assim. É andar para perceber que em cada amplidão de espaço, de cada rua, sempre larga, não cabe o menor olhar ao outro de mais perto, a menos que para dizer que ele está se deixando ver, que se cubra, que volte a ser invisível. Que deixe aparente apenas o que pode estar aparente, o que pode ser assunto da picuinha mais próxima do olho alheio. Dentro não cabe, dentro não pode. Dentro é o mal do mundo, dentro é o espectro. Leminski tinha um jeito de quem era dentro. Era só aquilo mesmo. Mais nada. Entre o tanto e o quase, entre o isso e o aquilo, entre o pouco e o menos. Uma sobra do muito. Mas Curitiba é larga em cada rua. Aberta pro mundo, pra um tempo pra frente dela. E também fechada pra este mesmo tempo. E de tão larga, deixa e proíbe o encontro. Tudo nela é mirado ao vasto. Mas Curitiba também é só e apenas igual a todas as outras cidades do mundo: 1) Curitiba se mata de inveja de si mesma. 2) Curitiba, quando se celebra, não se convida pra festa.

Daqui a pouco este ano vai estar cheio de Leminski pra tudo quanto é lado. São 60 anos pra uma vida que foi sim, senhor, muito. Em junho foram 15 anos pra uma morte que também foi, sim, senhor, muito, como todo morrer. Pra quem fica prestando a jura e ora, e diz, e silencia. Não vai aparecer no Jornal Nacional, nem vai ganhar saraivada de balas. Ainda bem que não. Leminski era barulhento demais, já chega. Seria hora sim de prestar silêncio, mas se nem eu que não sou nada consigo, imaginem um mundo inteiro que é tudo e que precisa antes de mais nada, falar, falar, falar, falar, falar. Cada um do mundo com suas verdades, suas categorias, suas teorias sobre o motivo de morrer, sobre o que deixou escrito o morto, do quanto vale cada escrito do morto, do quanto é prumo e do quanto é deslize cada escrito e fiapo de vida do morto. A repetição do de sempre. Do lenga-lenga de sempre (Morreu, coitado, tão novo. Tinha uma obra pela frente. Poderia ter virado um autor maduro, o pobre. E tantos desvãos e mais e mais e menos e menos).


Vai chover livro sobre o Lema, podem esperar. Livros que vão só repetir o de sempre. É tempo de comercializar barulho. Ganhar tostão com a impertinência do morto em virar efeméride. Eu mesmo devo ter metido aí as mãos em um ou dois. Mas não, não me arrependo. A gente é assim mesma, robusta; a gente jura que é séria, a gente é metida a besta. Acha que vai resolver o desvio da queda. Na queda, Leminski era o cara que sabia que ''o chão é duro". E a gente, que jura que está viva, vai por aí, cometendo alguns vários pecados, alguns enormes barulhos, sem prestar muita atenção no quanto de tão pouco o Leminski fez de silêncio. Falava demais. Escrevia demais. Traduzia demais. Inventava demais. E sempre com a mesma e certeira precisão, precisão de arqueiro zen com este jeito de não morrer chamado linguagem. Mas silêncio mesmo que é bom, o Leminski fez quase nenhum. Daí, ao terminar sua leitura deste texto, sente a bunda no tempo, e faça uma dobra, mínima que seja, um esforço, gigantesco que seja, e se contorça para dentro até conseguir silêncio e aprenda o que é do zen com a vida: algum desenho possível de silêncio chamado homenagem ao morto. Mas repare, em silêncio, no mais absoluto silêncio. É capaz do Leminski gostar.

Manoel Ricardo de Lima

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