Em criança

          (para Maria Emília Redi) *

                     Em criança, gostava de escalar telhados e muros. Punha uma escada no fundo do quintal e olhava ao longe os terrenos baldios, com trilhas de pessoas e de um ou outro cavalo de carroça, ali na Cidade Jardim. A idéia de voar me ocorria, mas sem bom resultado prático. Hoje, acho que deveria ter tentado mais. Acabaria, certamente, conseguindo.
                     Havia eco, esta reverberação misteriosa do som. Crianças, moleques soltando pipas falavam alto. Tinha certa inveja dos meninos e de sua liberdade maior do que a nossa, a feminina. Soltar papagaios era uma atividade séria e sagrada; quem duvidaria disso? As crianças tinham ares compenetrados neste tipo de folguedo, que parecia feliz trabalho. Lamentava não me ser permitido fazê-lo! Mas não posso reclamar tanto. Subia em árvores, falava com elas, delas caia e andava solta pelo bairro a um ou outro pretexto; muito feliz estava em vários momentos, infelicíssima em outros, mas o real motivo das excursões e andanças era a exploração dos caminhos, a contemplação, o sonho, a relativa liberdade. Cores e vozes faziam desenhos no ar. Se olhássemos muito firmemente o azul do céu, este se transformava em filamentos agitados, em pontos vivos de luz, elétricos, mais que elétricos, os quais tudo permeavam. Ainda é assim. É esse o recheio das coisas do mundo? É isso que inventa e cria os objetos? Codificação da matriz?
                     Cuidado nas manhãs chuvosas pra não pisar num sapo, cuidado pra não andar na enxurrada; tem caco de vidro. Cuidado com os raios, com o carro, com estranhos. E grandes lagartixas eu via caçando insetos, à noite, ao redor da luz mortiça do terraço. Sonhos infantis, idéias tolas, bases poderosas para a criação de eventos futuros, gestávamos em nossas almas plásticas.
                     Também havia ansiedade e tédio. Uma parte de mim sabia que havia um mundo mais externo, como cascas de cebola, à beira daquilo tudo; mundos outros com coisas ocultas, maravilhosas e terríveis. Enigmas a serem descobertos e desvendados, ousados feitos a serem realizados, que dependiam totalmente de nós com nossas botas de sete léguas, com nossas ilusões e criações especiais, as quais devem ser regadas a qualquer custo, a qualquer preço, sejam quais forem as durações ou sejam quais forem os desvios insuspeitados de nossas vidas. Pois, se devidamente cultivadas e percebidas, continuarão sempre lá ou num lugar especial qualquer, mesmo depois de nossas mortes, que afinal fazem parte desta trama toda, como um fio, um fio na rede sem fim, fio de mel e ouro.

Eloah Margoni

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N.E.: Escritora piracicabana falecida em 29 de abril de 2011, também conhecida como Mel Redi. Seu blog continua on line: http://aartedeviverseaprende.blogspot.com/

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