Um mito da estética brasileira

                A arte chegou cedo na vida de José Ribamar Ferreira. Ele era ainda garoto quando começou a pintar. Descobriu as artes plásticas durante uma aula no Colégio São Luís de Gonzaga, na capital maranhense. Tinha 12 anos. A professora armava, na frente da classe, um cavalete com uma série de gravuras e a molecada tinha de fazer redações para descrevê-las. "Um dia, quando vi aquelas gravuras grandes, me deu vontade de fazer uma delas. Comprei um caderno de desenho e lápis de cor e aí tentei imitar", contava aos colegas.
                 Não tardou a largar tintas e pincéis, trocados pelos versos. O nome daquele jovem também mudaria aos 18 anos. Rebatizado Ferreira Gullar, em homenagem à mãe, tornou-se um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos.
                Da poesia concreta às artes plásticas, a obra do Acadêmico Ferreira Gullar é crucial na discussão estética do Brasil. Renovador da linguagem poética e teórico da vanguarda, o maranhense José Ribamar Ferreira deixou sua marca em todos os campos da cultura, da poesia de vanguarda à canção popular, da teoria estética ao jornalismo, da ilustração de livros infantis à teledramaturgia. Quase sempre, com forte ênfase política.
                Por meio da palavra, Gullar fez da poesia um importante instrumento de denúncia social, especialmente na produção dos anos de 1950, 1960 e 1990, haja vista que, posteriormente, o poeta tenha reconsiderado antigos posicionamentos. Ao avaliar sua trajetória, é necessário refletir sobre os caminhos da própria poesia nos últimos cem anos, que nosso confrade percorreu às avessas.
                Sua poética engajada ganhou força a partir dos anos de 1960 quando, ao romper com a poesia de vanguarda, aderiu ao Centro Popular de Cultura (CPC), grupo de intelectuais de esquerda criado em 1961, no Rio de Janeiro, cujo objetivo era defender o caráter coletivo e didático da obra de arte, bem como o engajamento político do artista.
                Perseguido pela ditadura militar, Ferreira Gullar exilou-se na Argentina durante os anos de repressão, exílio provocado pelas fortes tensões psíquicas e ideológicas encontradas em sua obra. A importância do poeta foi reconhecida tardiamente, na década de 1990, quando foi agraciado com os mais importantes prêmios literários do nosso país. Em 2014, aos 84 anos, foi eleito imortal da Casa de Machado, com a morte do também saudoso poeta Ivan Junqueira.
                Atento às miudezas do cotidiano, a poesia de Gullar embutia uma sensibilidade especificamente brasileira, estabelecendo pronta empatia com o público. Se fosse para definir em uma frase o legado de Ferreira Gullar para a literatura brasileira, uma formulação possível seria: o autor de “Poema Sujo” conservou o sentido perturbador da poesia de vanguarda e restaurou o sentimento de perplexidade que está no coração da experiência humana. Sua morte sujou o fim do ano. Que venha 2017.

Arnaldo Niskier

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