O Sapateiro

A tarde caía como tantas tardes de verão: quente, abafada e dourada. O sol, em seu último bailado do dia, pintava a cidade embriagado pelo calor. Seus lampejos  tingiam os prédios, calçadas, confundindo olhos distraídos com luz e cor.
As pessoas, apressadas por terminar o dia de trabalho, transitavam entre as réstias vermelho-douradas do astro que anunciava o "show" da noite. Chegariam, certamente, estrelas cintilantes e a grande lua prata faiscando o céu escuro.
A rua era calma, mas aproximando o término do dia, agitava-se entre o vai e vem dos carros partindo para casa.
O sapateiro deu uma olhada rua afora para certificar-se do adiantado da hora, apesar  de já estar acostumado em prever o tempo de fechar sua oficina pelo barulho da cidade. Era o ruído da agitação costumeira dos carros, das portas comerciais que se fechavam e das vozes dos vizinhos dizendo:
- Até amanhã! Bom descanso...
Os toques enlouquecidos dos celulares anunciavam as chegadas, partidas, jantares, hora de pegar as crianças na escola. a somatória dos toques infernéticos mais parecia uma sinfonia eletrônica. Mas o sapateiro já se acostumara a todas estas coisas...
Era o som da vida, da cidade, da rua... Da sua rua, em que morava há 60 anos. Os sons já se tornaram familiares, era como ouvir a voz de seus amigos.
O dia já chegava ao fim.

Restava mesmo o vizinho vir buscar seu canário. Emprestara uma parede da sapataria para o descanso do passarinho, já que na frente da casa do vizinho o sol era causticante.
Então, para abrandar o sofrimento térmico do canário, o sapateiro recolhia seu "inquilino" na sombra e no frescor da sua calçada. Ali o canário poderia cantar com mais vigor sua ópera campestre.
Afinal, naquela canícula de verão, os vizinhos deviam unir-se para abreviar os mal-estares de uma temperatura de 40 graus. O dono do canário ficava alegre e satisfeito pela cortesia, coisa normal para o sapateiro que tivera uma austera educação que, de tão esmerada lhe proporcionou o polimento social, a gentileza e a discrição não muito comum nos nossos dias.
Depois, era agradável ouvir os trinados da avezinha enquanto martelava as solas dos sapatos.
Sua sapataria era à moda antiga, exatamente igual a como quando a inaugurara 60 anos atrás. Nem mais nem menos.

Ele não dava-se ao luxo de decorações - as coisas devem ser eficientes e modestas, pensava ele.
A velha máquina de costurar couros (que ficava bem na entrada da rua para pegar a claridade do dia), com seus pés de ferro escuros e torneados muito bonitos, até parecia uma peça de decoração do século passado.
O balcão de madeira muito usado, umas folhas de jornal recortadas para embalar os sapatos, o velho balcão escondendo a metade da prateleira cheiinha de sapatos de clientes, a sua mesa baixinha com as caixas de tachinhas e pregos, a velha lata de cola para couros e uma cadeira antiga que, de vez em quando, servia também para sua senhora sentar-se na calçada.
Estes eram seus móveis: singelos e necessários, suficientes para si.
O cheiro da cola perfumava os pedaços de couro pendurados em pregos nas paredes. Uns aqui, outros lá, eles formavam uma espécie de "escada" para apoio das teias das aranhas que teciam seus fios preenchendo os vazios entre os retalhos de couro. Assim elas iam entremeando as teias com a cor cinza da poeira antiga formando um véu muito fininho que voava de lá para cá quando ventava.

O canário cantava, os véus de poeira voavam, o calor castigava e ele martelava as solas dos sapatos.

Assim ele era feliz e o tempo passava.

Gostava do seu ofício. Todos sabiam da sua excelência na arte de consertar sapatos.
Era experiente e dedicado, tornou-se um tradicional sapateiro da cidade.
Naquela tarde, sentou-se junto à porta espiando a rua enquanto aguardava o vizinho vir buscar o passarinho.
Olhou para o canário e murmurou:
- Nossa...quantos anos fazem que trabalhamos juntos? Eu e você? Hum...quantos anos será que vive um canário?
Sorriu baixinho de seu diálogo imaginário com a ave e apressou-se em verificar se ninguém tinha visto tal cena.
Já nem sabia mais há quantos anos que o vizinho cumpria o ritual do passarinho todas as tardes. Anos e anos trazendo o canário, levando o canário, traz e leva, traz e leva...Quanto tempo!
O que importava mesmo era o que êle sentia neste final de tarde. Um misto de missão cumprida, alegria de ver o pássaro bem, proporcionar ajuda ao vizinho e que fora um dia produtivo apesar de tanto calor.
Mais um dia de trabalho!
Isto dava-lhe satisfação.

Lembrou-se rapidamente da mocinha sorrindo ao ver como ficaram seus sapatos de verniz
- Lindos! dissera ela levantando os sapatos pelos saltos à altura dos seus olhos
- Lindos... gostei muito!
Lá se foi a mocinha a sonhar com seu sapato de verniz...
O sapateiro sorria intimamente ao relembrar a e pensou que sua vida era completa. Sua realidade era esta: êle era um bom sapateiro que aguardava um canário cantante retornar ao seu dono.
Afinal... pensava, qual de nós dois tem mais propósito na vida? Eu ou o pássaro?
Cantar ou trabalhar? Estranhariam tais pensamentos já que ele não era muito de pensar e sim de fazer mas, com o passar dos anos, os cabelos brancos tinham-no deixado mais pensativo.
Há tantos anos que sua rotina era compassar os trinados do pássaro com as batidas do seu martelo que já instalara ali uma espécie de dependência psíquica, dêle em relação ao passarinho, é claro.
O som de seu ofício com o canto da ave.
Trabalhava desde menino. Sua família era estrangeira e desde que chegaram ao Brasil, o lema sempre foi a honestidade e o trabalho.
Naquela rua passara já 60 anos, sempre trabalhando.
Ali ele construiu sua casa, sua oficina, fruto de seu ofício incansável e metódico.
Um homem honesto. E calado.
Pensava que quando se quer analisar ou formar opinião, deve se fechar a boca, falar menos e ouvir mais.

Cantaré coisa para os pássaros. Trabalhar, é coisa para os homens.
A voz do vizinho interrompeu estas reflexões
- Como foi seu dia? Vim buscar o "meninão"... (o canário)
- Bom descanso e até amanhã!

Lá ia o vizinho falando baixinho com seu canário. Vamos, meninão... chega de cantar; agora é hora de dormir.
Ele olhou a cena e imaginou qual seria a surpresa do vizinho se um dia o canário respondesse! Riu escondendo de si mesmo o gracejo...será que estava ficando caduco?
Riu mais ainda....
Recolheu a velha cadeira que estava na rua, guardou o avental de couro e foi tratar de fechar a sapataria.

Ao abaixar para travar o cadeado sentiu uma fina e gelada pontada no peito.
Uma fisgada abaixo das costelas... Respirou fundo, quem sabe o calor do dia, uma dor passageira, nada haveria de ser.
Por uns instantes olhou a rua e sentiu uma imensa angustia... uma leve tristeza como aquelas chuvinhas leves e passageiras.
Lembrou que na semana passada seu filho o convidara para umas férias na praia.
- Uns dias só, papai...o senhor ainda nem conhece o mar da costa brasileira, vamos... vai descansar um pouco e, afinal, mamãe quer tanto, vamos....
- Não.
Não queria viajar nem ficar de "papo pro ar"nem fechar sua oficina por uns dias.

Imagine, pensava, nestes últimos anos nunca fechei minha oficina por um dia todo... não!
Depois, queria ficar quieto no seu canto. Nem pensar na algazarra dos netos, gente entrando e saindo, fazer malas, vozes altas.

Estes pensamentos até lhe davam calafrios...
Ia "matutando" seus pensamentos enquanto lembrava-se da vozinha estridente da neta menor... céus...
- Filho, não fique chateado comigo. Estou velho e não me apetece viajar.

Olhe, leve a mamãe... ela precisa descansar e respirar outros ares. Leve a mamãe eu fico a cuidar da casa e dos clientes, certo?
O filho abanava a cabeça em sinal de reprovação mas já insistira tanto que desta vez decidira deixar o pai em paz.
- Está bem, papai! Mas ficarei preocupado com você sozinho aqui, oras...
- Tenho os vizinhos por parentes, filho.Na hora da precisão mais valem. Pode ir sossegado e distraia a mamãe, ela esta necessitando.
Nem pensar nas portas da sua sapataria fechada por semanas. Nem pensar em tal desfrute.
Acabou de fechar a oficina e disse a si mesmo bem baixinho: foi uma bela decisão escapar de tal viagem!
Suspirou fundo, aliviado, convencendo-se que agira certo.
Novamente a pontada...o que seria? Talvez a tensão destes últimos dias, pensou.
Não importa as caras-feias que a mulher haveria de fazer.
Ela teria de compreender afinal. Não gosto de viagens, ainda mais com atropelo de crianças e gritarias...santo Deus.
Entrou pelo corredor da sua casa ruminando as idéias na cabeça e pensando no que ia achar lá dentro.
Que bom seria agora um banho e um belo jantar...
Abriu a porta e reparou que a maçaneta estava estragada, e suja.

Repentinamente observou as paredes todas acinzentadas pelo tempo.
- Céus... há uns 15 anos que não pintamos a casa.está mesmo estragada.
O tempo é imperdoável, deixa suas marcas.

Entrou na sala e sentiu o forte cheiro do cigarro da mulher. Um calafrio percorreu sua espinha. Como um raio, algo passou na sua mente...Sua casa, sua mulher e 60 anos de luta.
O que via então? Uma casa suja e uma mulher fumante despenteada, desiludida com sua vida... Uma mulher colada na tv sem sequer importar-se que na cozinha nada havia sido feito para o jantar. Era isto que via.
O que mais um homem como eu faria nesta maldita vida além de pregar tachinhas em solas de sapatos? O quê mais?
Não demonstrou qualquer sinal de irritação. Continuou entrando na sala sem nada dizer, mas dentro dele era um turbilhão, algo pronto para explodir.
Vontade de chutar as cadeiras, quebrar os velhos enfeites, gritar feito louco com a mulher, mas controlou-se.

Foi para o quarto, sentou na cama com a cabeça entre as mãos e suspirou fundo.

Dentro dele algo havia mudado naquela tarde.

Numa fração de minutos ele viu sua casa como estava na realidade: abandonada. Móveis empoeirados, louça suja na pia e tudo cheirando a fumo e pó.
- Esta é minha vida há anos... onde chegaram as coisas, meu Deus?
Engoliu em seco para afastar de si o sufoco que começava a apertar-lhe a cabeça e os pulmões.

Queria consolar a si mesmo, queria sentir o aroma de um banheiro limpo e uma bela sopa vindo da cozinha Era tudo quanto queria.

Mas assim era e assim tinha de ser.
Voltou à sala e disse à mulher:
- Quantas vezes já lhe pedi para que fume menos? Quer acabar se matando de tanta nicotina?
Ela fez um muxoxo com os lábios e continuou como um fantasma dando suas baforadas.

As argolas da fumaça iam entremeando-se às teias de aranha que caíam dos cantos das paredes amareladas e ela pensava no quanto o velho era pão duro, o quanto ela havia sonhado com uma vida melhor e quanta economia ela era submetida a vida toda. Pensava e fumava fortes baforadas.

Tudo que ela queria comprar, recebia a advertência:
- Custa dinheiro e temos de economizar!
- Mas... é tão pouco que custa e não é sempre que compro...vamos, dê-me o dinheiro para comprar.
- Não e não. Você sabe quanto me custa sustentar esta casa? Sabe quantos dias tenho de trabalhar para pagar as contas? Depois, se gastarmos tudo que ganhamos, como vamos nos virar numa emergência? Não e nem insista mais, por favor.
Ela fechava os ouvidos com as mãos e voltava a fumar em frente à tv.
O sapateiro foi à cozinha, sentou à mesa afastando as canecas sujas de café e restos de pão da manhã... foi conferir se era café fresco.
- Claro que sim! Quem fuma, bebe café o tempo todo, oras.
Menos mal. Ao menos um cafezinho para afastar o horror da sua mente. Encheu uma caneca de café e tamborilou os dedos na mesa antiga, distraido.

Seu olhar caiu naquela mancha de vinho sobre a mesa. Aquela mancha de vinho...Foi quando seu filho passara na Universidade.
- Médico!
Foi um dia inesquecível.o filho com o rosto iluminado de esperança e orgulho por ter passado no melhor curso de Medicina do país. Qual pai que não morre de felicidade ao vêr seu filho conquistar tal mérito?
Anos e anos martelando solas de sapatos mas agora tudo era recompensado: seu filho seria médico!
Os olhos do mocinho brilhavam de felicidade ao abanar o jornal com seu nome impresso diante do pai
- Veja, papai... veja... passei na Medicina!
O velho coração bateu forte.

Dos olhos desciam grossas lágrimas de alegria.como era bom ver seu filho seguir pelo caminho do bem, como era bom.
Abriram a garrafa de um bom vinho e ergueram as taças; brindaram deixando cair um pouco na mesa...(aquela mancha ali diante dos seus olhos agora).
Tatuada na madeira para lembrá-lo da festa do dia. Seu filho todo pintado pelos amigos e o orgulho de sua esposa, mãe do futuro médico.
- Mulher, nosso filho será um médico capaz!
A mancha de vinho de uma festa que se foi no tempo agora insiste em reviver naquela cozinha solitária e silenciosa.
Tomou o último gole de café e ao engolir veio aquela pontada fina como uma agulha a cravar-lhe o peito. Pensou em chamar a mulher mas lembrou da cena do cigarro e ficou quieto. Ela não viria certamente, nem ouviria com o volume da tv.
Ficou ali esperando a dor ir embora novamente.

Lembrou da sapataria e do canto do canário e sentiu um fundinho de paz.. Aquilo, há 60 anos, era seu castelo.
A dor piorou.
Repousou sua cabeça sobre a mesa e  sentiu um sono tão bom que fechou os olhos debruçado sobre a mancha de vinho.
Pensou na alegria da mulher quando descobrisse que nestes anos todos economizara uma pequena fortuna. Estavam garantidos os dois para a vida toda.pensou em gastar um pouquinho arrumando a casa, quem sabe ela ficaria mais animada...
Lembrou aquela foto que ela tirou  num vestido rosa claro... ela foi uma mulher atraente, sem dúvida. Será que uma reforminha na casa a faria um pouco feliz?
Ouviu o canto do canário ao longe... mergulhou num estado de serenidade, de torpor... de alívio.

Deu seu último suspiro.
Depois de algum tempo, ouviram sua mulher dizer o quanto ele era generoso... e quanto deixou saudades.
O canário ainda canta alegremente.
Saudades.

Sheila Pavanelli

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