DIA DE MUDANÇA

Tínhamos feito diversas mudanças. A cada uma delas eu via nos olhos de minha mãe um esmorecimento crescente. No início dessas andanças ela relutava com argumentos ardentes. No entanto, os argumentos foram cedendo espaço para a melancolia. No cimo dos meus cinco ou seis anos, ficava horas observando ela se arrastar de um lado para outro, labutando com os afazeres da casa como se carregasse nas costas um enorme fardo de tristeza.

Eu me sentia triste a cada "nova parada". Era assim que minha mãe dizia, afagando-me a cabeça, como se eu não entendesse o que acontecia. Quase que num ritual; recolhia os cacos das louças quebradas na mudança; afastava-se de casa algumas braças arrastando o saco tilintando pelo caminho. Depois de enterrado, ela esquadrinhava o horizonte por longo tempo com os braços cruzados e o rosto sombrio. Ficava meio sem jeito quando percebia que eu a observava. Forçava um riso repuxado, quase careta. Apanhava-me pelo braço e voltávamos para casa.

Corriam-se os meses; ela ia tomando nova aparência, ensaiava umas cantorias quando meu pai estava distante e ria para mim, um riso verdadeiro. Acanhado, mas verdadeiro. Seu andar ia pegando agilidade, as chinelas de couro já não se arrastavam chapinhando a terra e, o peso perecia aliviar-lhe as costas, adotava uma postura mais altiva ao caminhar. Isso me deixava agoniado, pois já havia percebido que, quando minha mãe começava a melhorar, estava próximo o novo processo de mudança.

Por mais de uma dezena de vezes eu me vi tentado a questionar meu pai se acaso era proposital as intempestivas mudanças. Se não gostava de ver minha mãe contente. Mas o que eu conseguia era estacar diante dele, emudecido, sem articular única palavra. E quando indagado simplesmente respondia:

— Nada não, pai.

Baixava a cabeça e dava-lhe as costas, ganhava o terreiro e me embrenhava no mato engolindo soluços com o bornal a tiracolo. Descontava minha ira nas juritis que se espantavam em revoadas. Voltava para casa com o sol já ido. Numa dessas fugas tive uma surpresa ao voltar: minha mãe sentada num cepo de madeira chorava. Nova mudança para a noite. Sempre mudávamos a noite. Meu pai nunca dizia motivo. Desconversava.

Ela segurava entre as mãos a imagem de São Judas, relíquia que ganhara de minha avó, que não conheci. Partira-se em pedaços ao ser encaixotada. Meu olhar encheu-se de nuvens baças. Inflei que não cabia em mim. Um nó doído na garganta estrangulou minha voz, avermelhou meus olhos. Prostrei-me em frente ao meu pai. Disse tudo, falei sem me dar conta. De um único despejo, rompeu-se as comportas. O corpo era um todo tremura. O chão sumiu-se sob os meus pés e, a imagem de pau pai oscilava indo e vindo diante de mim, desfocada. Uma espécie de tonteira.

Por fim, parei fatigado e esperei o castigo. Senti o fogo da guaiaca me queimar as costas, as nádegas e as pernas. O vergão empolando o corpo. Fechei os olhos e cerrei os dentes, não corri.

Estremeci quando a grande a mão calejada me agarrou pelo braço, puxando-me para ele. Abraçou-me demoradamente, soluçando: "nunca mais, meu filho!". Minha mãe abandonando a tristeza junto aos cacos, correu para nós de braços abertos desfraldado um largo sorriso como nunca eu antes vira. A lua já despontava no horizonte, toda sorridente. Recolhemo-nos os três em silêncio, desviando das trouxas espalhadas pelo assoalho. Não houve única palavra. Acredito que ninguém dormiu naquela noite. Os raios da lua invadiam os aposentos. O silêncio só era rasgado de tempo em tempo por longos suspiros.

José Mattos

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