O sonho derretido e o serviço de primeira

Amor, você se lembra? Era a realização de nosso primeiro sonho!
Havíamos planejado por muito tempo e conseguíramos juntar o dinheiro para dar a entrada.
Naquela época havia necessidade de entrar em fila e aguardar durante seis ou sete meses até que fosse possível a entrega.
Todos os dias eu ligava ou comparecia à revendedora. O coitado do vendedor não agüentava mais me ver. Abria um sorriso amarelo e balançava a cabeça negativamente.
Algumas vezes eu ficava sentado na recepção como que esperando uma boa notícia, alguém que houvesse desistido.
Outras vezes tentava ser simpático e contava piadas, talvez alguém tivesse pena e me oferecesse seu lugar na fila.
Parecia que meu sonho não se realizaria.
Um dia, logo ao amanhecer, peguei o carro de meu pai e fui cumprir com minha obrigação; Eu trabalhava na pequena sorveteria da família e uma de minhas funções era ir ao mercado central e arrematar frutas no leilão diário.
Eu sempre usava a caminhonete da sorveteria, mas meu pai havia viajado e o carro novo estava ali, lindo, reluzente como que à minha espera.
Justamente naquele dia eu peguei o carro de meu pai.
Justamente o carro do qual ele morria de ciúmes.
O leilão não havia sido dos melhores, a compra não havia sido vantajosa como de costume. Além disso, a demora para fechar o pregão foi muito maior e eu precisava abrir a loja. Ansioso
e, talvez jovem demais para pensar nas conseqüências, deixei meu pé pesar um pouco mais no acelerador.
A velocidade era mais alta do que deveria, principalmente com o peso que carregava no carro. Sacos e caixas de frutas balançavam, mal acomodados no banco traseiro, mas não me importavam os sacolejos, eu tinha que chegar.
De repente, inadvertidamente, uma senhora de idade atravessa a rua e não tive outra opção a não ser pisar no pedal freio.
Era velocidade e demais, peso demais, eu não conseguiria parar. O curso de pilotagem, feito ás escondidas, deu-me o reflexo necessário é rapidamente usei a caixa de marchas para auxiliar o freio que não suportaria o peso da carga.
Passei de quarta marcha para segunda. Era uma medida drástica. Um estrondo, muita trepidação, o carro parecia desmontar. Finalmente a parada total!
A velha senhora estava salva, porém a caixa de mudanças do carro não suportara o tranco.
Meu pai iria me matar, tirar meu couro, arrancar meus braços e pior que isso, iria me proibir de usar o carro. Se ao menos eu não estivesse correndo tanto, talvez ele compreendesse.
Não, ele não entenderia, afinal eu deveria estar usando a caminhonete e não o seu carro novo.
Sem saída, decidi, contratei um reboque e levei o carro para uma oficina. Eu tinha que consertá-lo antes que meu pai voltasse.
E o dinheiro, de onde sairia?
Não havia outra opção. Nosso sonho se desfazia naquele momento.
Havia uma chance apenas e seria a fila para entrega levar muito tempo. O tempo suficiente para que minha namorada e eu juntássemos novamente a quantia necessária.
Sem melhor opção deixei o carro no conserto e, na velha caminhonete, levei as frutas que, ainda naquela manhã, virariam sorvetes.
Não sabia como lhe contar. Nosso sonho, como sorvete, havia derretido.
Eu havia trabalhado tanto! Você havia trabalhado tanto! Nosso sonho derretera!
Felizmente o carro ficou pronto antes de meu pai retornar de sua viagem e o serviço foi de primeira. Nosso sonho derretido havia virado um serviço de primeira.
Voltei à oficina, usei nosso dinheiro, paguei o conserto e levei o carro para casa.
Naquele mesmo dia recebi o telefonema do vendedor informando que nosso sonho havia chegado. Bastava passar na revendedora, acertar o dinheiro da entrada e retirar nossa tão esperada
moto.
Éramos jovens, para nós seria a realização de um sonho!
À noite fui buscá-la em seu trabalho e muito entristecido contei o fato.
Você, sorridente, me falou:
- Não se preocupe, amor. Vamos buscar nossa moto.
- Como? Com que dinheiro? Usei quase tudo no conserto do carro!
- Amor, eu nunca havia feito isso, não tenho esse costume, mas hoje joguei no bicho e ganhei, acertei na milhar! Vamos buscar nossa moto! Vamos realizar nosso sonho!
O serviço de primeira ficou congelado no tempo e meu velho pai jamais soube desse fato.

Marcos Woyames de Albuquerque

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