Saudades da Horta das Carriças
Não era lavrada a Horta, mas cavada à enxada, não se sabe portanto de onde lhe virá o nome.
Na Horta das Carriças havia um poço com nascente a uns três metros de fundo, de onde a água se tirava aos baldes, com uma grande cegonha*.
A cercá-la, uma parede de pedra solta, ao correr de toda ela. Nasciam espontaneamente bastas e pequenas violetas brancas. O cavador não lhes tocava com a sua enxada, talvez
porque o comovesse tal gesto da Natureza.
No velho aterro, sobras da terra onde o poço fora escavado, ainda em montão e amparadas por pedregulhos ali deixados ao acaso, alguém espetara estacas de lilases brancos e azuis, que cresceram desvairadamente e floriam em tal abundância que o ar da primavera vivia ali, embalsamado em odores e cores.
A água seguia por um tosco rego escavado no chão rico, há muito tempo. A salsa não secava nunca e existia sem ter sido semeada por ninguém.
A erva cobria tudo e, das fendas na parede, rebentavam videiras bravas, que se aproveitavam às vezes para fazer enxertos na vinha.
Num canto sombrio, numa espécie de caverna de verdor, cresciam violetas dobradas, azuis, enormes como nunca vi, ia jurar que foi Deus que as inventou ali mesmo e só ali
existiam.
Rompera o muro, com as suas fortes raízes, entre aquela horta e a do vizinho, uma árvore altíssima. Esta, em vez de provocar discórdia, provocava harmonia: Aproveitávamos todos as suas pequeninas bagas, aromáticas e roxas, que caíam lá do alto do Lamegueiro, em profusão, sobre as duas propriedades.
Os frutos da terra a todos os homens pertencem: eram deliciosas, embora se lhes aproveitasse só um niquinho de polpa e de sumo... o resto era um caroço redondo e negro, que
cuspíamos mas nunca germinou.
O rego de verdura desembocava num tanque de pedra granítica, quadrado, pejado de limos, de onde saía a água para a rega, por um buraco feito no fundo que se atafulhava ou desatafulhava com um trapo, conforme as necessidades das plantas: Ervilhas, favas, feijão, couve, árvores generosas de pêssegos, peras e maçãs.
Mesmo ao lado, inusitada, uma roseira-chá enorme, frondosa, onde me escondia a mascar laranjas e limas-doces e que tinha sempre uma rosa, mesmo no tempo frio, para oferecer à sua pequena amiga.
O outro lado do pomar era o reino das laranjeiras. Aí o doce aroma das florinhas brancas de seda, que juncavam o chão de alvura, envolvia-me.
Ai andar ali descalça, sem medo dos lacraus, das centopéias, das aranhas!
Rebolar naquele tapete tenro, encher o peito de ar perfumado e não pensar em mais nada! Deixar ali suspensos os meus sonhos e os meus poemas inventados e logo esquecidos!
E recordar a minha mãe, há tanto tempo coroada de noiva com aquelas mesmas flores e depois levada no seu vestido branco para debaixo da terra com tantos lírios roxos, carapeteiros brancos, rosas e lágrimas.
Ali lembrava eu, sozinha, a minha mãe breve, a mãe quase desconhecida. Ali chamava por ela, que mais ninguém lhe dizia o nome, que mais ninguém lhe via os retratos, que se fora como uma borboleta leve e me deixara.
Ali eu invocava as recordações mais fundas do meu peito de criança ferida.
Voltei às Carriças com a minha filha pela mão, em silêncio, e saí de lá a chorar:
É um recanto na minha memória, já não existe. Não restou nada, senão a saudade .
Maria Petronilho
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Nota: a Carriça é uma ave que, quando se ara a terra, saltita de rego em rego atrás do lavrador para comer os vermes que a charrua pôs à superfície.
*cegonha - engenho para tirar a água a pouca profundidade, constituído por uma vara que tem um balde suspenso numa das extremidades e um peso na outra.