Os enfeites da árvore
D. Mariquinhas enfeitava tudo no Natal. Laços verdes e folhas vermelhas para todo lado. E o vice-versa.Da árvore natal - com enfeites novinhos e outros com mais de cinqüenta anos (sim, pois ganhara alguns de sua avó, no seu primeiro ano de casada: "Agora, você vai usar meus enfeites, daqui para a frente. Não tem mais ânimo para armar árvores", dissera-lhe a anciã às garrafas de vinho vestidas de papai noel, ou com gravatinhas, aventais.
Velas paramentadas de rendas douradas e rabos-de-rato prateados. Luzinhas pisca-pisca quase cobrindo todos os muros, e paredes da casa.
Toalhas pintadas, estrelas, bastões, pecinhas de madeira, aljôfar, tecido, crochet. Até o porta-papel higiênico no banheiro e o bujão de gás tinham laçarotes e sininhos.
Papai e Mamãe Noel para todo lado.
Cartões de Natal com imagens do chalé, à noite, todo iluminado.
Botas de feltro, renas e trenós.
E a peça mais antiga, trazida por algum ex-combatente da Itália, era a peça que a senhora colocava por último, no topo da árvore, às vésperas do dia 25 pois temia que caísse e se espatifasse.
Os netos adoravam tudo aquilo, se encantavam com o presépio, embora os já adolescentes reparassem na falta de proporção entre seus componentes por exemplo, uma vaquinha média, um elefante minúsculo e um patinho gigante, a nadar num espelho cercado de capim, feito com papel de seda verdolengo. Mas riam à socapa: longe deles, magoar a querida velhinha.
Ontem à noite, D.Mariquinhas subiu na escadinha de metal para colocar a estrela, bem no topo da árvore. Ficou contemplando um pouco aquela peça rara. De repente, tonteou: a vista escureceu e ela caiu, batendo a cabeça.
No velório, Jorginho, o neto mais novo, de seis anos, chorando muito, criou coragem e foi olhar a avó de perto. Reparou no véu preto sobre os cabelos branco-prateados. A avó estava sem o colar de pérolas dos dias de festa. Alguém já lhe explicara que ela morrera fazendo o que mais gostava. E que, na verdade, as pessoas queridas não morrem. Ficam dentro de nosso coração, disse a Tia Lili. Ele ficou pensando: - Só se ela encolher muito:como vai caber? E só se cortarem em pedacinhos... .Muitos filhos e netos...
Outra pessoa lhe explicou que não devia chorar, pois vovó estava ali mesmo, mas invisível.
Ah, é, pensou Jorginho. Então ela vai querer seu batom cor-de -rosa, seu colar de pérolas, seu reloginho de ouro...
Então,decidido, o homenzinho foi ao quarto de despejo, onde estava a árvore toda desmontada, as caixas de enfeites e apanhou os cordões de aljôfar vermelho. Encheu as mãos gorduchas, chegou perto do caixão, onde alguém colocara, bem cedo, uns degrauzinhos do consultório de seu pai médico, usados para os pacientes descerem da cama de exames, para que os menores pudessem facilmente se despedir da avó.
Jorginho então, amoroso, começou a enfeitar a velhinha querida. Ninguém disse nada. O garoto foi e voltou várias vezes. Sobre os crisântemos amarelos, foi dispondo todas as peças natalinas, tão queridas para D. Mariquinhas. Todos choravam, mas com um leve sorriso nos lábios.
Nem mesmo o agente funerário,quando fechou o caixão, ousou perguntar o que era aquilo, aquele brilho, o verde e o vermelho predominantes, sobre as flores. Alguém o interceptara e dissera que o neto mais novo entregara à avó os enfeites natalinos.
Em casa, o menino explicou ao pai, o qual chorava feito um meninão enorme:
- A vovó não ia gostar de chegar no céu sem seus enfeites de Natal.
E o mais velho, rouco e de nariz inchado, afagou-lhe a cabecinha encaracolada e murmurou:
- Fez muito bem Jorginho... Ela vai gostar...
Clevane Pessoa de Araújo Lopes