BATISMO DE FOGO
Ontem tive meu primeiro contacto com o mundo dos espíritos moçambicanos. Guiada pelas minhas duas secretárias / escudeiras, fui à procura do sobrenatural para desvendar um mistério que abalou o ânimo na minha casa.
Roubo, sim, e feito por pessoas conhecidas, da casa. as duas aconselharam-me: «Senhora, procura curandeiro, ele vai dizer quem foi.»
Estariam elas tentando uma absolvição forçada? Não, meu coração diz que são inocentes, conheço-as as almas, são minhas amigas, confidentes, escudeiras.
Saio de casa seguindo os passos das duas. Elas andam altivas, apressadas, como rainhas que são. Estão orgulhosas de me prestarem um favor, uma ajuda e felizes pelo meu respeito pelas suas tradições.
Não sei se acredito em curandeirices, mas sigo sempre o que disse o Borges - «que las hay, las hay», então, por que não arriscar? Afinal, eles acreditam e, se foi um dos trabalhadores da casa, a simples menção do nome de um curandeiro fará com que confessem e devolvam o que foi roubado. Não foi grande coisa, uma máquina fotográfica e um mp3 player - isso compra-se de novo, sem problemas. O grave é a quebra da confiança, afinal, a minha casa é uma das únicas na cidade em que os empregados entram e saem com a maior liberdade. Sinto-me traída por ter agasalhado esta cobra na minha casa e revoltada por não saber qual dos quatro é a cobra. Entramos por vielas estreitas de chão batido. À minha volta, casebres cercados por terreiros varridos por vassouras de piaçava têm à porta crianças bonitas, alegres a brincar enquanto suas mães fazem os serviços da casa. Alguns homens estão parados à sombra das mangueiras e todos lançam olhares para mim. Será que estranham uma branca no meio deles? Será que sabem o que eu procuro?
As minhas escudeiras-guias seguem o caminho em fila indiana sem olhar para trás. Betinha, a guia principal, tem as costas rectas e um caminhar seguro, o queixo levantado. Diferente da Betinha que trabalha lá em casa, sempre de olhar baixo, dizendo «sim senhola». Ela não domina muito bem o português, língua de colonizador, de opressor. Enganam-se os que se sentem independentes, porque agora, em Moçambique, há um outro tipo de colonização, muito mais cruel e desumana. É a colonização mental. Os nativos querem ser como os invasores, servem-nos com humildade e respeito. Respeito? Talvez medo, talvez necessidade. Invejam-nos. Minhas escudeiras um dia perguntaram
sobre uma tal pomada milagrosa que tornava a pele branca. Eu disse que tal milagre não existia e perguntei:
- Por que querem ser brancas??? De que valerá esta cor pálida, que fica vermelha ao sol e a qualquer pancadinha fica roxa? Que é tão frágil diante das doenças de pele, que fica rugosa com a idade??? Vocês sim são privilegiadas, olhem a pele de vocês, lisa, bonita, brilhante. não precisam invejar as brancas, mas sim sentir pena, muita pena.
As duas entreolharam-se, incrédulas, e fizeram que sim, mas acho que me julgaram louca.
A Cecília - que nasceu Rosita, mas se renomeou Cecília - segue à minha frente. Ela já percebe melhor o português e é minha confidente e amiga. Está lá em casa há mais tempo, sempre pronta a ajudar, sempre parceira. Dou-lhe conselhos de mãe, porque tem a idade da minha irmã mais nova. Mas é mais mãe do que eu, já tem uma filha, menina alegre que já começa a dar dores de cabeça. Ela também me aconselha, do seu modo me ampara.
Depois de alguns minutos, chegamos à casa. Estava uma mulher sentada à sombra de um toldo, tinha um prato com um resto de arroz e feijão vermelho que comia com a mão. Cumprimentou-nos e convidou-nos a sentar. Eu disse (já advertida pelas escudeiras) simplesmente que queria uma consulta. Se a curandeira fosse boa mesmo, adivinharia o motivo da nossa visita. A mulher faz menção de levantar e eu digo, respeitosamente, que primeiro termine de comer. Ela diz que já terminou e entra na casa.
Pouco depois, chama-nos para dentro. Betinha e Cecília entram na frente, pedem licença e eu imito. Num quartinho abafado está a mulher, agora vestida com uma capulana amarrada na altura das axilas. Está sentada de costas para nós, num banquinho baixo. Sentamo-nos as três na esteira e a mulher começa a preparar-se. Coloca colares de missangas, uma boina surrada na cabeça. O lugar está cheio de raízes, farinhas, pratos, dois chapéus na parede e muitos cestos. Devem ser as oferendas aos espíritos, penso eu.
A curandeira é bonita. Tem a pele lisa das negras bem cuidadas, seu traseiro é grande e sua cintura fina. Uma bela figura. Ela começa a chamar pelo seu espírito-guia numa língua que não entendo. De repente, Cecília começa a repetir a seu comando uma palavra, e eu sigo. Pergunto o que é aquilo e minha escudeira responde que é para a curandeira falar mais.
A mulher fala muito em uma língua que não entendo. Mais tarde, a Cecília diria-me que era tsonga, um dos tantos dialectos desta terra. Fico confusa, a mulher diz coisas e Cecília responde. Elas falam de mim. mas o quê, meu Deus? Pergunto, Cecília responde com meias palavras e diz:
- Senhora tem uma avó que não é branca, é preta.
Eu fico pasmada, embasbacada, besta!!! Minha bisavó era índia, bugra, caçada no mato pelo meu bisavô português. Como elas sabem disso??? Não carrego comigo nenhum traço que me denuncie. Sou branca como a neve que eles nem conhecem. Tenho os cabelos pintados de vermelho para esconder os brancos. Meus cabelos são ondulados, mas estão presos. Como ela adivinhou???
- É por causa da sua bisavó que não concebe. O espírito dela perturba a senhora - diz Cecília.
Realmente há mais de um ano tento engravidar e não consigo. Mas não foi por isso que fui lá. Quero saber do furto, quem foi. Minha cabeça dá voltas, como ela sabe que quero engravidar? Será que o tal espírito que fala naquela língua estranha conhece meus segredos mesmo?
Afinal, Cecília me diz:
- Foi um homem quem roubou.
Betinha confirma, repetem a palavra para «homem».
O espírito vai embora e a curandeira volta, estica os músculos, porque receber um espírito judia o corpo. Passa as mãos com força pelos braços para tirar qualquer energia que tenha ficado, olha-nos e pergunta o que o espírito falou. Ela não sabe, não ocupa a mesma dimensão que seu guia.
Cecília explica e ela diz que vai fazer um «medicamento». Prepara com algumas ervas e um óleo que não sei o que é. Entrega e dá as instruções. Colocar todos os empregados juntos, dizer para que é o feitiço e exigir que o ladrão se acuse. Do contrário, queimar o feitiço, o mal irá para o
mentiroso.
Fico com medo. Que mal será este? Não quero matar nem prejudicar ninguém por uma simples câmara fotográfica e um mp3 player. Tomara que o medo faça o criminoso se acusar.
Mas estou curiosa. Como faço para conceber? Já que tocou no assunto, agora quero saber. A curandeira diz:
- Um problema de cada vez. Primeiro este, o do roubo. Depois, volta e vemos como acalmar o espírito da bisavó.
Volto para casa muda, meus pensamentos dão nós no meu cérebro e a cabeça dói. Amanhã resolverei o mistério. Será?
À noite não consigo dormir, as imagens de espíritos e missangas povoam meus sonhos.
Amanhã, amanhã o mistério se resolverá.
Aline Machado