CM - O Futuro de uma ilusão
Marta Rolim
Capítulo Oito
Desde meu recente acoplamento, Nei me entrevistara longamente visando dirimir quaisquer dúvidas referentes ao funcionamento de minha UEC. Ele anunciara a equipe, com raro bom humor, que não havia traço de psicopatia, que eu, Raquel, continuava a mesma velha de sempre.
Nei! como se atreve? protestei sorrindo ainda estou na casa dos vinte, muito longe de sua arcaica idade!
Claro, claro, tão nova quanto a antiga Raquel!
Nei, sou eu afirmei mais seriamente, subitamente preocupada, tentando dar um tom seguro a minha voz a mesma pessoa, sua colega e amiga...
Desculpe Raquel, sei que é você respondeu, enlaçando-me ternamente.
Enquanto abraçava Nei, meu olhar cruzou com o de Marcos e pela primeira vez senti algo estranho. Achei-o especialmente atraente. Era realmente um homem muito atraente e comecei a listar mentalmente suas qualidades admiráveis: um líder nato, inteligente, corajoso, comprometido com a vida, bonito... lindo... não conseguia tirar os olhos dele e me perguntei, sem parar de desejá-lo um segundo se quer, se minha UEC estaria mexendo com minha libido. Jamais olhara Marcos daquela maneira. Minha divagação amorosa foi interrompida bruscamente.
Um grito grupal animalesco estremeceu a casa e num repente CM10 e CM20 adentraram pela adega, ainda urrando, acompanhados de Carla e seguidos por meia dúzia de rapazes e moças. Um exército desordenado e violento. Faziam um escarcéu dos diabos, gritando como guerreiros na linha de frente da batalha. Nei assustou-se e movido por um impulso protetor, quis tomar a minha frente para me defender. Isso bastou para que seu corpo fosse atingido por um projétil desidratador. Vi seu corpo desaparecer e se transformar num montículo de húmus aos meus pés. Deus, Nei virara fertilizante! Inexplicavelmente tive vontade de rir e meu corpo foi sacudido por uma gargalhada histérica irresistível.
Do que você está rindo? - irrompeu CM20, irritado e avançando impetuosamente em minha direção.
Tive que pensar rapidamente. Eu não acreditava, simplesmente estávamos jogando de novo! E o jogo era mortal.
Ora, porque você matou um dos nossos? falei, ainda rindo muito, descontroladamente, a voz sacudida e entrecortada por risos contagiantes.
Matei? CM20 começava a rir também Fiz uma burrada, não foi? o riso assomou frouxo e generoso de sua boca.
Nós estamos fazendo acoplamentos expliquei, apontando para uma pequena marca cirúrgica no canto de minha fronte. Tentava lidar desesperadamente com a confusão de sentimentos em meu íntimo, enquanto buscava responder ao perigoso inquérito dos CM.
Humm, você não parecia a nosso favor no Centro Federal de Pesquisa intrometeu-se CM10, os olhos ardilosos, brilhando de desconfiança.
Realmente, eu era cega e tola!
Enquanto falava com CM10 revivia os agudos sentimentos de ser uma presa fácil e sentia o poder crescente que os CM tinham de me afligir e amedrontar. Os demais integrantes da equipe de genetrônica permaneciam quietos. Marcos, Roger e Hélio sabiam que suas vidas dependiam de mim. Eu era a única que poderia conquistar alguma credibilidade perante os jovens Coração de Metal e, talvez, conseguisse nos manter a salvo da armadilha em que nos encontrávamos.
Por favor, sente-se aqui continuou CM10, assumindo o papel de entrevistador e me indicando uma cadeira à mesa.
Sim, agora eu era a entrevistada. CM10 me provocava, debochado e irônico como só ele. Achei graça novamente, seu cinismo me pareceu hilariante. Sentei-me à mesa com um sorriso mal contido nos lábios. Ele sorria também, sorriso de gato olhando a presa.
Bem, o que a fez desejar ser como nós, doutora Raquel? indagou CM10, cheio de gentileza.
Isso realmente lhe interessa, não? retruquei, tentando ganhar tempo.
Porque foge da resposta doutora Raquel? Será que não sabe o que responder?
A resposta é simples, não há mistério algum nisso. Nas últimas semanas estivemos estudando o acoplamento de Vando, acreditávamos que havia algo errado com as Unidades Eletrônicas Cerebrais, mas descobrimos logo nosso grosseiro equívoco. Não encontramos nem sequer um defeito no acoplamento, mas ao contrário, todas as evidências nos mostravam a realidade: os acoplados são seres privilegiados, com uma capacidade cognitiva inimaginável. Por isso, decidimos iniciar procedimento de implante de UEC o mais breve possível. Como vê, eu fui a primeira a receber o implante.
Bingo, doutora! Resposta plausível! Parabéns!
CM10 sentia-se tão à vontade e confiante que intuitivamente percebi que precisava minar sua segurança ou estaria perdida.
Não creio que você esteja satisfeito com minha resposta CM10! Você não confia nem em sua sombra! parti para a ofensiva nem que eu contasse que dois mais dois é quatro você acreditaria. Garanto que ia fazer cálculos matemáticos complexos para provar o contrário.
Os jovens CM riram em coro. Gostavam de ver um líder constrangido. CM10 estava surpreso com minha inesperada ousadia. Então, Roger, ansioso por natureza, e não suportando mais o jogo de gato e rato que se anunciava longo e torturante, tomou a decisão errada. Agarrou-se ao pescoço de um dos jovens CM e ameaçou matá-lo se não nos deixassem partir.
Não, seu idiota!!! gritou Hélio, aflito diante da evidente imperícia de Roger.
Roger, e o jovem CM refém, pulverizaram o ar com o húmus de seus corpos. Os projéteis desidratadores sibilaram fulminantes, disparados de várias armas do nervoso pelotão CM. Hélio, meu querido amigo Hélio, pagou caro pelo grito inconformado. Também seu corpo virou fertilizante, sem chance de arrependimento. Desta vez o riso tenso não me tomou. Fiquei paralisada, sem conseguir tomar ação. Marcos interveio, providencial e habilmente:
Bem, senhores, creio que a questão está resolvida. Solicito que o meu acoplamento seja feito de imediato! Acho que já chega de perdermos tempo com tolices.
Estranhamente CM10 não o contrariou, e numa tranqüilidade que jamais vira entre os CM, nos pusemos a fazer os preparativos para acoplamento de UEC em Marcos. Nisso, encontraram Vando em estado comatoso no fundo da adega, repousando numa cama hospitalar, mas ninguém se importou. A minha explanação, descrevendo Vando como cobaia de estudos científicos, parecia ter justificado plenamente sua condição inconsciente. Com os conhecimentos que adquirira, chefiei a cirurgia e cuidei de que Marcos recebesse um acoplamento sem o vírus do game Total War.
Agora estamos aqui, os dois juntos, no que sobrou do Centro Federal
de Pesquisa-OE. Marcos está tão concentrado que não
nota meu olhar apaixonado. Ainda bem. Quem sabe no futuro? Agora não
é hora, não posso distraí-lo, precisamos de cada segundo
disponível. Os jovens CM nos deixaram em paz, pensam que somos iguais
a eles. Estão ocupados em infernizar a vida dos milhões de
humanos sem UEC! Há guerra, escravidão e caos por toda parte.
Estamos estudando uma forma de corrigir as UEC dos jovens acoplados. Asimov
estava certo, a integração corpo-máquina deu-se mais
rapidamente do que supúnha-mos... A guerra total parece iminente,
precisamos pensar e agir rápido, muito rápido. Não
sabemos quanto tempo ainda nos resta...