Diário de uma cachorrinha
José Celso Garcia
Curada do resfriado,Tina faz um reconhecimento do sítio e arredores
e, as experiências bem sucedidas, vão tornando-a
cada vez mais ousada. Assim, ela relata: A desastrosa
tentativa de atravessar um mataburro; o primeiro dia de frio; a mania de
colecionar objetos; o passeio fora do sítio; a difícil convivência
entre aves e cães e uma travessura quase fatal.
.
Meu Diário
Diamantina Edgarda
16.03.99 - Amanheci outra. Já estou me comunicando bem. Ouça: au au au. Viu? Dá licença que eu tenho que tirar o atraso e vou começar puxando o vestido da Dona Maria - a de pêlo branco. A outra é muito brava. Já estou andando pelo infinito. Lá tem um lugar onde ficam os caixotes de metal que rodam, vão embora e voltam, e ficam a maior parte do tempo quietos. Mas quando vão andar fazem um barulhão... — eu saio correndo!
17.03.99 - Hoje tive uma experiência tenebrosa. Ufa! Não gosto nem de lembrar. Sai atrás de Dona Maria de pêlo branco, até onde o caminho dos caixotes de metal, de cimento vira de terra. Na passagem de um para outro tem um buraco fundo com uns pedaços de ferro no meio, por onde passam as rodas. A Dona Maria, a Dona Juma e o Seu Dinho passaram para o outro lado. Eu acompanhei os cachorros pelo lado, não por onde passam as rodas, mas por um cantinho. Só que no meio eu fiquei com medo de continuar e não tinha como voltar. Fiquei ali tremendo até que a pêlo branco me tirou de lá. Acho que não volto.
04.05.99 - Finalmente consegui acesso ao computador. O grandão não me deixa entrar na casa. O tempo está muito frio. Eu não conhecia o frio. Desde que eu nasci fazia calor. Não é nada bom. A gente — cachorrinha também é gente —não tem lugar. Tudo está frio. De dia ainda tem um solzinho legal, mas de noite, meu...! O único lugar bom é dentro da casa. Mas o grandão não tem coração — diz que estou muito fedida e que não paro quieta. Só porque eu fico roendo o pé das mesas, o estofado da cadeira, virando o cesto de lixo, mordendo o fio do computador, essas coisas que não fazem mal a ninguém... Tenho que ficar olhando o calor pelo vidro. Consegui pular a janela. Aí o grandão afastou o banco da janela. Com muito esforço e depois de cair uns bons tombos consegui pular do banco para a janela e entrar na casa. Mas o grandão agora fechou a janela. Tá difícil...
05.05.99 - Acho que já sou adolescente. Estou com mania de colecionar coisas. Já tenho uma folha de coqueiro, um vaso de plástico, um bagaço seco de laranja, um sabugo de milho com palha e tudo, uma pereca seca, um besouro amassado, uma canela de vaca e mais umas coisinhas. Ficam lá no pátio. Brinco com elas horas a fio. A Dona Cidinha quando varre o pátio não mexe nas minhas coisas. A Dona Cidinha é boa pra mim. O grandão também é bom... às vezes...! Me dá comida, algumas muito gostosas, brinca comigo, me pega no colo. Mas não deixa eu entrar em casa. O grandão acho que pensa que eu sou boba. Ele põe um tapete lá fora para eu deitar e ficar quieta lá fora. Pois eu pego o tapete e trago aqui para dentro, e deito. Rá!
11.05.99 - Ontem fui conhecer a casa da Dona Cidinha. Fui brincar de pique com os cachorros de lá. Só sei o nome de um: é Alfredo. Eu chamo ele de Al-auau. Ah! achei minha bolinha de borracha. O grandão me deu quando eu era pequenininha. Ela é toda colorida e boa de morder. Mas, por mais que eu morda, ela não fura. Ela estava sumida — de vez em quando ela some, não sei porque — mas agora já a juntei a minha coleção. Tinha um sapatinho que veio junto com a bolinha - tinha um cheiro gostoso — esse eu acabei com ele em três tempos.
12.05.99 - Tenho que reconhecer, com esse frio que está fazendo, eu estou fedida mesmo. Tem hora que nem me agüento — gostou do trema? — sou cachorrinha mas não analfabeta. Mas tomar banho agora, nem em pensamento de santo. E por falar em santo há dias que não vejo a Dona Maria de pêlo branco. Estou sentindo sua falta... e a falta dos biscoitinhos a toda hora. A de pêlo branco não gosta de ver ninguém que não esteja mastigando. É uma coisa! Até bala de mel ela me deu. Com esse negócio de andar pelo infinito meu pêlo está cheio de carrapixos e de barro seco.
13.05.99 - Outro dia o grandão trouxe uns vinte bichinhos engraçados, eles são pequenos, amarelinhos, tem um focinho engraçado: é fininho e amarelo também. E ficam fazendo piu-piu o tempo todo. Eles parecem passarinho, só que não voam. Acho que é porque ficam presos dentro de uma caixa. O grandão não deixa eu chegar perto da caixa, ela fica no alto, em cima de umas cadeiras. Mas outro dia ele e a Dona Cidinha puseram eles no chão para tomar sol. O grandão pôs um perto de mim e eu saí correndo. Os passarinhos ficam comendo a ração nossa — minha e do Seu Dinho e da Dona Juma, e eu tento pegá-los, mas eles voam. Um dia ainda pego um. A noite o grandão fica mexendo no computador e me deixa entrar, mas só no lugar em que fica o computador. Se eu vou lá pro lado do sofá lá vem bronca. As vezes eu fico olhando pela porta de vidro e uma cachorrinha fica olhando de lá para mim, tudo que eu faço ela também faz, eu começo a latir e ela também late. Mas quando o grandão abre a porta ela some. Não sei como ela some tão depressa...
22.05.99 - Eu tenho um rabo muito comprido. Ele é muito útil para abanar quando chega alguém conhecido. Ou então me dá equilíbrio quando quero passar em algum lugar estreito, mas tem um problema: é quando eu sinto coceira no rabo. Quando eu vou coçar o rabo sai do lugar, eu vou pegá-lo e ele anda mais um pouco, e sempre na mesma velocidade que eu. Aí eu fico desesperada rodopiando que nem louca. Só consigo pegar o rabo quando estou deitada ou então se me encosto em uma parede ou cadeira, aí ele fica parado e eu coço. Ontem eu fui ao infinito, atravessei aquele lugar em que eu quase caí — eles chamam de mataburro. Aí tem uma estrada em que passam caminhões e quase que um deles passou em cima de mim. Acho que se continuar a ir lá minha vidazinha vai ficar bem curtinha. Mas como não tenho nenhum juízo, o quê fazer? Acho também que a Dona Maria, a brava, gosta de mim — quando estou sozinha com ela ganho festinha. Ela gosta de me dar as coisas para ver eu ficar na ponta dos pés. E também as vezes elogia minhas estrepolias. Hoje acrescentei uma capa de óculos e um chinelo à minha coleção, mas a Dona Cidinha viu e os tomou. Tenho que esconder melhor minhas coisas.
26.05.99 - Hoje a Dona Cidinha estava carregando lenha para fazer nossa
janta e caiu um pau. Eu tentei ajudar, puxando a lenha para cima mas não
dei conta. Valeu a intenção. Sempre que posso eu carrego
palha de coqueiro e gravetos para perto da cozinha. As vezes também
espalho gravetos pela cozinha toda, principalmente quando é o grandão
que está acendendo o fogo. Mas também é preciso fazer
umas artes de vez em quando...