O coração deserto,
Antonio Júnior

CAPÍTULO FINAL

Ao final de um silêncio acentuado, Cain murmura alguma observação sobre a areia cintilante. No horizonte, uma jangada com
dois pescadores de tronco nu e calções xadrez. Nenhum sinal de chuva como nos últimos dias. Uma sensação romântica de
abandono total. O mar morno, de águas turvas, formando piscinas térmicas de tonalidades incomuns. A areia desigual, sacos
plásticos e baronesas mortas. O seu corpo marrom como toco de madeira à espera de um escultor. Enquanto organiza os
sentimentos aniquilados, aponta notas num caderno, como quem estuda um monumento histórico não por turismo, mas pela
vontade de confundir os séculos. “O que ocorreu com Darlene é uma prova evidente da mediocridade humana”. Sua reflexão
é perturbada por um batalhão de turistas equipados com máquinas fotográficas que toma como paisagem um forte do século
dezessete. Fecha os olhos para não vê-los. Não suporta a matilha alegre que enche praias, loja de souvenirs e restaurantes,
deixando o rastro mesquinho da sujeira por onde passa. Chegara à ilha ao amanhecer, arrastando sentenças nebulosas e
buscando a solidao. Abandonara as gravações de um especial de tevê, que será exibido em cadeia nacional e onde conduziria
entrevistas e comentários pessoais. Lúcio não concordou com o comportamento ambíguo. “Falo de coração. Sabe que sou teu irmãozinho”, aconselhava, enquanto Cain preparava a sacola. “Quase convincente a pieguice”. Então mudou o discurso: “Por que não estamos na prisão? Somos calhordas! Eu, você, Clarice, todos. Por que uma viatura não nos leva?”. “Terão, sem dúvida, as suas razões”. Lúcio é um personagem inacabado, com o otimismo desabando como furiosa avalanche. Cain prefere os existencialistas, são mais firmes em seu desespero. Lúcio se esforça para demonstrar estar acima da degradação, deixando escapar um entusiasmo semelhante aos que amam. Esconde de si mesmo que é um oportunista, um inútil, um oco. “Juro que sou capaz de fazer tudo por Clarice”. “Ela não paga as suas contas? É o que importa”. “Não me deixe sozinho, Cain.
Leve-me. Onde vai?”, pergunta solene. “O mar me leva”. “Para onde?”. “Para o mar da vida com suas infinitas correntes que
levam ao mar de origem”. Sacudiu a  cabeça de forma ressentida, Lúcio o examinando estupidamente. O telefone chamando,
Cain agarrou-o com avidez, ouvindo a voz pastosa de Aldo, enquanto imaginava a teia rósea de rugas sobre as maçãs do vereador. “Meu amigo, peço que esqueça o que aconteceu entre nós. Tenho uma carreira pública a zelar e prometo que posso ajudá-lo quando precisar. Falei neste instante com a fulaninha, o travesti. Ela foi horrível, gritou no telefone, pediu uma quantia absurda para ficar calada”. Ao abrir a porta do elevador, encontrou uma atormentada Clarice. Ela desviou o olhar,
envergonhada. Mas ali, estava, enfim, o que eles procuraram durante tanto tempo. “Minha bela, é  preciso fugir da
tempestade”. “O terror! O terror! Por que escondê-lo? Estou aqui para terminar com Lúcio, não verá mais um centavo meu”.
“É um direito seu. A dor também tem sua saída”. Os lábios se tocam. Despedem-se devagar, com languidez, cheios de
compaixão.
Ao volante, prometeu: “Deixo de ser Cain Infante de hoje em diante”, e recitou para sua própria pessoa a comédia humana de
Proust: “Assim como nas comédias Scaramouche é sempre fanfarrão e Arlequim sempre estúpido, a conduta de Pasquino não
passa de intriga, a de Pantalon é só avareza e credulidade; do mesmo modo a sociedade decretou que Guido é espirituoso
mas pérfido, e não hesitaria em sacrificar um amigo por um bom gracejo; que Girolamo capitaliza tesouros de sensibilidade por trás de uma aparência de rude franqueza; que Castruccio, cujos vícios é possível vergastar, é o amigo mais certo e o mais
delicado filho; que Iago, apesar de dez belos livros, não passa de um amador, enquanto alguns maus artigos de jornal
imediatamente sagraram Ercole como escritor; que Césare deve estar ligado à polícia, ser repórter ou espião. Cardenio é
esnobe e Pippo não passa de um sujeito falso, não obstante seus protestos de amizade. Quanto a Fortunata, coisa nunca
admitida, é bondosa. A redondeza de sua gordura é uma boa garantia da benevolência de seu caráter: como é que uma
senhora tão gorda poderia ser má?
Aliás, cada um, já muito diferente pela natureza do temperamento que a sociedade tem procurado no armazém geral de seus
costumes e caracteres e lhe atribuiu de uma vez por todas, se afasta dele tanto mais a concepção a priori de suas qualidades,
abrindo-lhe enorme crédito de defeitos contrários, cria em seu proveito uma espécie de impunidade. Sua personagem imutável
de amigo certo em geral permite a Castruccio trair cada um dos amigos em particular. Só o amigo sofre: “Que bandido devia
ser para que o abandonasse Castruccio, esse amigo tão fiel!”. Fortunata pode espalhar maledicências em grandes ondas.
Quem seria bastante louco para buscar-lhe as fontes sob as pregas de seu corpinho, cuja abundância indefinida serve para
dissimular tudo? Girolamo pode praticar sem medo a lisonja, à qual a sua franqueza costumeira dá um toque imprevisto mais
encantador. Pode manifestar com um amigo uma franqueza que vá até a ferocidade, pois entende-se que é no interesse deste
que o trata mal. Césare me pede notícias de minha saúde, é para fazer um relatório ao doge. Não me pediu: como sabe
esconder seu jogo! Guido vem até mim e cumprimenta-me pelo meu bom aspecto. “Ninguém é tão espirituoso como ele, mas
ele é de fato muito mau”, gritam em coro as pessoas presentes. Essa divergência entre o verdadeiro caráter de Castruccio,
Guido, Cardenio, Ercole, Pippo, Césare e Fortunata, e o tipo que encarnam irrevogavelmente aos olhos sagazes da sociedade, não lhes causa nenhum dano, já que essa divergência, a sociedade não quer encará-la. Mas ela tem limites. Faça o que fizer
Girolamo, trata-se de um benfeitor de aparência rude. Diga o que disser Fortunata, ela é bondosa. A persistência absurda,
esmagadora e imutável do tipo, do qual podem afastar-se o quanto quiserem sem perturbar-lhe a fixidez serena, impores no
tempo com crescente força atrativa, a essas pessoas de fraca originalidade e de procedimento não muito coerente a quem
acaba por fascinar esse único alvo idêntico no meio de suas variações universais. Girolamo, dizendo a um amigo “suas
verdades”, sabe-o grato por servir-lhe assim de comparsa e por lhe permitir representar, “repreendendo-o para seu bem”, um
papel honroso, quase brilhante, e agora muito perto de ser sincero. Mistura à violência das diatribes uma piedade indulgente e
bem natural dirigida a um inferior que faz ressaltar sua glória; experimenta por ele um verdadeiro reconhecimento e, por fim, a
cordialidade que o mundo lhe tributou por tanto tempo que ele acabou por conservá-la. Fortunata, cuja gordura crescente,
sem estancar seu espírito nem lhe alterar a beleza, fá-la no entanto desinteressar-se um pouco mais pelos outros, estendendo a
esfera de sua própria personalidade, sente suavizar-se a acrimônia, único obstáculo que a impedia de cumprir condignamente
as funções veneráveis e encantadoras que a sociedade lhe delegara. O espírito dos vocábulos “benevolência”, “bondade” e
“redondeza” pronunciados sem cessar diante e por trás dela, absorveu lentamente suas palavras, em geral elogiosas hoje e às
quais sua vasta aparência confere uma autoridade como que mais lisonjeira. Ela tem a sensação vaga e profunda de exercer
uma magistratura considerável e pacífica. Às vezes parece transbordar de sua própria individualidade e surge então como a
assembléia plenária, agitada e no entanto branda, de juízes benevolentes que ela preside e cujo assentimento a perturba a
distância... E quando, nas vesperais em que se conversa, todos, sem se embaraçarem nas contradições da conduta desses
personagens, sem notarem sua lenta adaptação ao tipo imposto, dispõem ordenadamente suas ações na gaveta bem  no seu
lugar e cuidadosamente definida de seu caráter ideal, todos sentem, como um contentamento emocionado, que
incontestavelmente se eleva o nível da conversação. É claro que esse trabalho é logo interrompido para não pesar, até o sono,
nessas cabeças pouco afeitas à abstração (são homens de sociedade). Então, depois de terem fustigado o esnobismo de um, a malevolência de outro, a libertinagem ou a dureza de um terceiro, separam-se e cada um, certo de haver pago regiamente seu
tributo  à benevolência, ao pudor e à caridade, vai se entregar sem remorsos, na paz de uma consciência de que acaba de dar
provas, aos vícios elegantes que cultiva.
Essas reflexões, inspiradas pela sociedade de Bérgamo, aplicadas a uma outra, perderiam uma parcela de verdade. Quando
Arlequim troca a cena bergamasca pela francesa, deixa de ser um estúpido para transformar-se numa pessoa fina. É assim que
em certas sociedades Liduvina passa por mulher superior e Girolamo por um homem de espírito. É preciso também
acrescentar que às vezes surge um homem para quem a sociedade não possui um caráter definido ou, pelo menos, um caráter
disponível, um outro o substituindo. Primeiro, ela lhe dá a entender que não é desejado. Se se trata na verdade de um homem
original e se ninguém está à sua altura, incapaz de se resignar a tentar compreendê-lo e por falta de caráter que se lhe iguale,
ela o exclui; a menos que ele possa representar com graça o papel de ator principal, coisa que está sempre em falta”.
No barco que  levou Cain Infante a Ilha dos Dragões,  uma cigana sardenta o importunou, alertando: “Sua profissão transmite
infortúnio. Vive mergulhado num caldeirão de ódio, aconselho que não acredite em sorrisos e apertos de mão”. Tudo faz parte
do passado? Encosta-se em sacolas de diferentes nacionalidades. O coração não expressa significados. Quem seria o autor
das cartas anônimas, escrevendo para pessoas à luz de velas, e acentuando o pavor? Elas levaram Darlene e Herbert Henrique à morte. O porto a sua frente. Coqueiros, barcos modestos coloridos imersos em movimentos minimalistas, ondas
arrebentando contra a muralha de pedra. A imensidão do mar. Onde o sentido? Em que noite esconderia os fragmentos de seu tormento? Desconhece este homem consumido por sustos. Qual o momento exato da cilada? Deveria dormir cedo e
agradecer a Deus todas as manhas por estar vivo e com saúde, aconselhou sua avó muitos anos antes. Preferiu afundar-se em
livros e consumir cocaína noite após noite. Em que instante maléfico perdeu-se de Deus? Como reencontrar o Oculto neste
labirinto de volúpia? Fecha os olhos como uma rápida batida de asas de  borboleta. Uma voluntariosa agonia trespassada
como faca.
A  raça humana no porto da Ilha dos Dragões. Um cais estreito, pedaço de concreto rústico invadindo o mar. Um portal
imponente resgata fatos antigos. Bananeiras trêmulas misturam com eloqüência o verde  e o amarelo. Mamoeiros, abacateiros,
mangueiras. A flora subtropical: buganvílias e hibiscos. Cenário perfeito para a multidão cheia de vida. A camisa estampada de
Cain se perde no meio de caixotes de legumes, frutas e bebidas, e se está verdadeiramente entre os eleitos, nenhuma
credibilidade o seqüestra.
Não seria sincero caso aceitasse a companhia de Lúcio nesta ilha. Os seus últimos diálogos foram apavorantes, inúteis:
“Vamos sair, temos que pelo menos dar uma olhada na noite”. “As noites são idênticas”, respondeu enfadado. “Temo que
Clarice encontre outro. Preciso vigiá-la”. A mesma ansiedade cáustica revelada por um texano diretor de uma série policial.
Cain Infante não conseguia lembrar suas curtas frases. Houve um intervalo de cinco minutos. “Está me fazendo perder a
paciência"” “Correto. Melhor que  eu vá embora”. “O hispânico deste capítulo é você, portanto...- não completou a idéia,
ameaçando lágrimas - O que passa?”. “Ando cansado e deprimido. Quero estar longe deste país”. “Não vê que estamos
atrasados?”. ”Tenho três frases neste filmeco, ponha outro estúpido em meu lugar. Sei que me emprega pensando que levará
Milena para a cama”. “É isso o que mereço? Pois volte para o seu país subdesenvolvido, para a sua miséria coletiva. Volte
para onde nunca encontrará tranquilidade”. Milena Contreras abraçou-o, e seguiram juntos até a cantina. “O que será de
Milena? Vai deixar-me sozinha num hotel vagabundo?”. “Você sabe se virar. Eu estou morto”. O mesmo mau presságio o
inquieta. “Ando cansado e deprimido”, repetiu.
A areia habitada por insetos minúsculos e dentro do homem, as avaliações. Um homem moribundo num povoado atarracado.
Casas pequenas e brancas, separadas por caminhos estreitos. Após uma ladeira, a igreja de pedra e a amendoeira etérea.
Escolhe a pousada cercada por varandas, com redes e vasos floridos. Assemelha-se a um palco, pois é a mais alta das
construções. Ele deitaria-se na rede esperando estrelas cadentes. Uma hospedaria simplória, onde leria Kaváfis e planejaria
seu suicídio: numa noite enjaulada pela lua crescente tiraria o calção, a camiseta e o tênis e nadaria em direção ao horizonte
somente com a fita abençoada presa no pulso. ”Você está bem?”, interroga uma mulher. Ele responde  calmamente, com
exatidão. “Respirava com os olhos fechados para aprisionar na memória a pureza do ar”. “Muito bem. Sou a responsável por
esta pousada. Fique a vontade. Quer um caju? Não sei se sabe que cura reumatismo e sífilis”. Aceita o fruto da terra e o tom
de voz modesto. É uma mulher diferente de Milena, Darlene, Clarice ou Cibele - o efeito sedutor tem como ponto central a
luminosidade interior. Cain acompanha os passos curtos e lentos dela. Sorri pela primeira vez em muitos dias. A hospitalidade
emocional em relação a ele, encontra estímulo no seu coração estéril, no seu ceticismo, na sua dor medida e glacial.
 
 

 

« Voltar