VIA ZAMBI - Marta Rolim
Capítulo Cinco
Visão-Complexa
Lançada a missão da equipe de Estudos da COBRAPA! – Anunciei para mim mesmo, com amarga ironia. Apesar dos sentimentos que me perturbavam, mergulhei com afinco no estudo dos dados que dispúnhamos. Não demorei a me dar conta de que o pequeno laboratório de minha sala não continha os recursos suficientes para a elaboração das experiências e das simulações necessárias e, todos de nossa equipe, chegando a um dado limiar de dificuldade, íamos trabalhar nos laboratórios maiores, com recursos ampliados. Contudo, ainda assim, freqüentemente precisávamos pedir auxilio à equipe de apoio para conseguirmos montar os protótipos que tínhamos em mente.Nenhum homem é uma ilha;
Qualquer homem é uma parte do todo.
John Donne
A regra para a equipe de cientistas era simples e clara: podíamos abordar o problema como nos aprouvesse, mas o andamento e os resultados de todas as pesquisas deveriam ser partilhados com a equipe. O objetivo era um só, ajudar uns aos outros no que fosse possível. Existia liberdade para rejeitar as opiniões e sugestões de terceiros, mas deveria haver disposição total para o diálogo e a troca de conhecimento. O tempo era deveras curto e o problema complexo demais para pensarmos sozinhos.
Babalô, Ogam e Zimbaue rumavam para a construção de uma atmosfera artificial contida por uma espécie de imensa cúpula orgânica, mas enfrentavam inúmeras dificuldades, como a multiplicação do efeito estufa e as dificuldades com relação ao teor de oxigênio e gás carbônico. Eu, Hóris e Iansanã estávamos tentando restabelecer o campo eletromagnético da Terra, assim como seu campo gravitacional. Buscávamos a gênese do desequilíbrio e a partir daí o que poderia restabelecê-lo. Moabe, Holodum e Exá pesquisavam formas de enxergar o problema, pois mudando os enfoques e a abordagem, poderiam chegar a uma solução inusitada. Haviam concluído que poderíamos lidar com a falta da atmosfera se essa tivesse por conseqüência única, a falta do ar que respiramos. Tínhamos condições de produzir uma atmosfera respirável, mediante o emprego das cúpulas orgânicas, e fornecê-la as nossas cidades subterrâneas. Contudo, o agravante da situação era que a perda da atmosfera terrestre não implicava apenas na perda do ar que respiramos, mas em termos o ciclo da água quebrado, em termos os raios de sol nos atingindo de forma ainda mais maléfica, em perdermos os últimos refúgios de vida natural, os Oásis. Essas e outras conseqüências vinham atreladas ao fato de que estávamos perdendo a atmosfera terrestre. Isso sem mencionarmos problemas supostamente menores, como o bombardeio de meteoros, que cairiam direto no solo sem qualquer impedimento.
Mil soluções surgiram e mil soluções se mostraram inadequadas. Podíamos congelar uma pequena parte da água do planeta e mantê-la em reservatórios subterrâneos, evitando que evaporasse e se perdesse no vazio do céu. Isso retardaria a perda da água que pudéssemos acumular, mas no momento que consumíssemos a água e ela começasse a ser eliminada de nossos corpos, das casas, das fábricas e das indústrias, como a recuperaríamos? Nossa atmosfera artificial e nossa cúpula orgânica de contenção estavam longe de conseguir restabelecer o mais singelo ciclo natural da água (evaporação=> condensação=>liquefação), e seus caminhos sobre a terra, sem gerar problemas tão ou mais graves. Além disso, mesmo que o ciclo da água fosse restabelecido de modo artificial, era impossível sustentar toda a humanidade por esse meio limitado. A água não seria suficiente para todos, ainda que a usássemos apenas para as necessidades vitais.
Em nossas reuniões de equipe, o desânimo prosperava. Recuperar o planeta começava a parecer impossível.
Cansado de tanto estresse e pressão, pois desde que entrara para a COBRAPA vivia totalmente dedicado ao trabalho, fui almoçar novamente na torre da superfície. O trabalho me alienara tanto da vida cotidiana que fiquei surpreso ao constatar que as pessoas já estavam alarmadas com os acontecimentos. Já não era nenhum segredo que o planeta ia mal das pernas. Todos os jornais anunciavam manchetes com temas ambientais, alguns com frases esperançosas e outros simplesmente fornecendo dados crus e informações “não tendenciosas”. Embarquei na via GaG para o topo da plataforma com vista para a floresta do Oásis e fiquei boquiaberto. O acesso à torre estava sendo controlado pela polícia e só consegui passagem quando me identificaram como cientista da COBRAPA. Enfim, no topo da plataforma, a visão foi terrível. O que fora uma simples linha branca no horizonte, que mal se divisava, agora se transformara numa faixa larga que dominava a metade da paisagem. A mata estava agonizando. As aves, outrora viçosas, que pairavam sobre seus ninhos, alimentando seus filhotes, haviam desaparecido, restavam apenas os ninhos abandonados. Para onde terão ido? – perguntei-me. A resposta estava do outro lado da plataforma. Milhares, talvez um milhão de animais, de todas as espécies, estavam encurralados nos poucos quilômetros de mata doente que ainda restava de pé. Podia-se ver muitos agonizantes sobre as copas queimadas de sol e tantos outros em movimentos de pura angústia. Cena horrível.
Foi nessa altura dos acontecimentos que desenvolvi uma idéia relativamente simples, mas que poderia salvar muitas vidas, e a levei para discussão na reunião.
— E se ao invés de mudarmos o planeta, mudarmos nossas necessidades? – falei.
— Como assim, explique isso melhor – disse Babalô, franzindo o cenho e mostrando-se imediatamente interessado.
— Ok! Peço a atenção de todos por um momento. Ótimo! Nós temos um corpo que necessita de água, nutrição e ar para se manter vivo, certo? Mas o que faz realmente você ser quem é, onde habita a nossa essência?
— Zambi, não enrole, aonde você quer chegar? – interrompeu-me Hóris.
— Que tal se você deixá-lo explicar, Hóris? – disse Babalô Continuei meu raciocínio e ao final da explanação, ninguém disse nada.
A idéia consistia numa forma de preservar muitas vidas numa situação de extrema carência. Construiríamos inicialmente um tanque experimental, de material sintético-não-rejeitável pelo corpo humano, e ali colocaríamos a quantidade adequada de líquido encefálico artificial e cérebros vivos, alimentados por um bombeamento eficiente de sangue previamente oxigenado e nutrido. As mentes se manteriam conscientes e ativas. O tanque e as condições para manter os cérebros vivos eram bastante simples de fabricar, nada que não pudéssemos criar. O problema maior consistia na falta total de estímulos para os cérebros, já que os órgãos dos sentidos seriam eliminados. E outro problema, também importante, residia na falta de um meio de comunicação. Resumindo: como nos sentiríamos se fôssemos apenas mente, nossa própria mente, sem experimentar mais qualquer sensação física, inclusive a visão. Nenhum toque, nenhum cheiro, nenhuma imagem, silêncio total. Talvez a ausência dos sentidos fosse suportável, mas a total falta de comunicação precisava ser resolvida.
— Isso é apavorante! – desabafou Babalô – Mas a idéia é muito boa! Como você pensa em nos tirar dessa enrascada, rapaz? Digo, nos tirar dos tanques?
Havia três possibilidades. Uma seria colocar os cérebros em estado de atividade mínima por meio de resfriamento. As mentes ficariam inconscientes, mas em perfeitas condições de vida, se é que assim podíamos falar. Um segundo destino para os cérebros seria mantê-los ativos e com as mentes conscientes, mas enviá-los para uma viagem de busca pelo universo. Os robôs seriam seus membros e olhos, mas uma pequena equipe de humanos “inteiros” poderia servir de guia e guardião da operação. Em alguns trechos da viagem, os cérebros poderiam ser colocados em coma induzido por resfriamento e no momento propício os cérebros poderiam ser despertados. Um terceiro destino para os cérebros seria mantê-los na terra, trabalhando em prol de uma possível salvação do planeta e esperando a hora em que corpos-clone poderiam ser fabricados e seus cérebros novamente implantados numa caixa craniana normal, humana.
Por mais absurda e assustadora que a idéia fosse, ela foi aprovada. Foi assim que vim a ser altamente respeitado pelos Evols. Um digitalis tivera uma idéia revolucionária! Claro, não era a solução mágica que todos gostaríamos, mas era uma solução viável e que preservaria muitas vidas. A mídia anunciava o fim do mundo, e a morte espalhava seus tentáculos assassinos por toda a flora e a fauna, transformando a terra num manto de areia. Nessas condições, mesmo o mais conservador dos homens, se via tentado a aceitar uma solução radical. O que era melhor, morrer ou manter uma esperança de vida?
Começamos a fazer os primeiros testes. Agora não apenas eu trabalhava na idéia, mas recebi a ajuda de vários outros colegas, todos ajudando a viabilizar o projeto da melhor forma possível. Começamos com os porcos rosa. Fizemos um tanque com fluido encefálico e colocamos os primeiros cérebros de porcos. Ao final de vinte e quatro horas, re-implantamos os cérebros em corpos-clone e a adaptação foi perfeita! O mais fantástico foi que o nível de estresse dos animais foi mínimo, talvez, justamente pela falta de estímulos. Supunha que os animais sobreviviam psiquicamente num mundo alucinatório, de imagens lembradas ou inventadas por seus próprios cérebros. Era isso que parecia estar acontecendo, muito embora o período de vinte e quatro horas não pudesse ser ainda um período de medida padrão, já que o projeto envolvia que as mentes ficassem muito mais tempo isoladas de estímulos físicos. Havia muito ainda o que pesquisar.
Nossos experimentos com os porcos evoluíram para uma segunda versão. Os cérebros agora iam para o tanque com os olhos conectados a eles. Mas tal tentativa de manter o sentido da visão, não fui bem sucedida porque complicava o procedimento. Os olhos não podiam ficar submersos no fluido encefálico, exigindo que os cérebros não pudessem ocupar livremente todo o tanque. Adicionalmente, era preciso fornecer riqueza de estímulos visuais para os olhos captarem e transmitirem ao cérebro, que podíamos fornecer a alguns, mas não a todos. Não havia muito o que ver imerso num tanque! Concluímos que o estímulo da visão seria concedido a alguns lotes de cérebros ativos, especialmente preparados.
Por fim, os experimentos com animais cessaram.
Embora nos referíssemos, grotescamente, ao conjunto de cérebros humanos como lotes de cérebros em conserva, no fundo tínhamos plena ciência de que tais cérebros, assim dissociados de seus corpos e formas humanas, eram pessoas! Sim, cada qual encerrado em seu mundinho. Literalmente!
Alguns experimentos foram feitos com seres humanos. Os voluntários sabiam que havia risco e eram preparados da melhor maneira possível para enfrentarem a vivência de separação do corpo como um tipo de existência nova, de renascimento num mundo sem corpo. A maioria iria ficar em estado de coma induzido por resfriamento. Foi então que demos um novo passo extraordinário!
Surgiu a Rede, humildemente graças a mim! Unimos os primeiros cérebros de um tanque! Através de manipulação genética, criamos pontes de ligação entre os cérebros; pontes de neurônios e suas sinapses; tecido cerebral produzido. Assim como um lado do cérebro se comunica com o outro lado, assim as mentes começaram a se comunicar entre si. Se a ponte de comunicação era colocada na zona frontal dos cérebros, tínhamos uma comunicação emotiva entre as mentes. Se a ponte era colocada no lóbulo esquerdo, predominava uma comunicação de âmbito racional. Enfim, julgamos que a melhor região para haver a ponte de comunicação nos cérebros, era a região de junção do lóbulo direito ao esquerdo. Dessa forma, as pontes permitiam um fluxo integrativo completo entre as mentes, propiciando acesso pleno às potencialidades desenvolvidas em cada cérebro.
A Rede de Mentes ou a Super Mente (SM) era mais do que a soma das mentes
individuais; era uma entidade nova, uma mente diferente de tudo que já
havíamos visto. Encontramos uma forma de nos comunicarmos com a
Super Mente por meio de chips eletrônicos na região da fala
de cada cérebro individual, mas logo descobrimos que as funções
cerebrais haviam sido redistribuídas pela Rede. Aparentemente cinco
cérebros do tanque haviam assumido a função de guardar
memórias reprimidas, o inconsciente coletivo das mentes unificadas;
dois cérebros haviam assumido as funções do ego e
a consciência. A função da fala estava numa região
reservada num lóbulo inteiro de um outro cérebro, e somente
então conseguimos nos comunicar de fato com a Super Mente. Na verdade
a SM demorou um bom tempo para nascer, foi preciso uma reorganização
mental fabulosa. Aparentemente, a fusão das personalidades é
fruto de uma disputa de egos, mas nenhum ego sai inteiramente dominante
sobre os demais, já que na verdade todos são transformados,
nenhum sobrevive tal e qual era, a experiência é inovadora
em todos os sentidos. O pensamento flui múltiplo na Rede de Mentes,
interminável, complexo.
Desde então, fascinado por minha descoberta, estou aqui. Muitas
vidas foram salvas, não todas, mas muitas foram salvas. Ainda não
descobrimos a solução para as alterações nos
campos energéticos da Terra, mas melhorias contínuas têm
sido implantadas, em parte graças a nós, da SM. Não
sei até ponto ainda sou o jovem Zambi de outrora. Não sei
até que ponto o que conto é verdade, não temos muitos
parâmetros de realidade por aqui, embora os outros, os indivíduos,
como Babalô, nos forneçam dados sobre o mundo lá fora.
Não sei até que ponto estou contando apenas minhas lembranças,
talvez distorcidas pelas lembranças de meus outros Eus. O que sei
é que trabalhamos pela causa da vida. Às vezes, depois de
acordar, depois de acordar com um pesadelo, alucinando gritos agudos, me
pergunto, aflito, se haverá algum Evol entre meus colegas de tanque.