O mistério das crianças desaparecidas - Sonia Rodrigues

Capítulo  5

O certo é que o casonão teria sido resolvido se Joaquim não houvesse perdido a hora, naquela manhã de terça-feira.

Joaquim não escutara o despertador, acordara tarde, saíra de casa às pressas e não parou na banca habitual para comprar o jornal. Correu direto a abrir a loja, pois havia encomendas a receber, pedidos a aviar e as coisinhas de todos os dias. Os tempos estavam difíceis para o comércio, Joaquim e a mulher trabalhavam sem outros auxiliares de balcão e por isso, assim que possível, Joaquim foi pessoalmente à banca da esquina comprar seu jornal.

O troco caiu das mãos de Joaquim e rolou para perto da mulher que esmolava na esquina, filho ao colo. Ao abaixar-se para pegar a moeda, Joaquim viu no rosto miúdo da criança seus pequeninos olhos azuis.

Azuis?

Maria, que observava o marido da porta da loja pensou que Joaquim decerto ficara maluco. Joaquim jamais dava esmolas! Ainda por cima, abaixara-se para conversar com a mendiga e olhava com atenção o bebê nos braços dela. Há mais de um ano a desinfeliz fazia ponto ali na esquina e ele só se referia a ela como a uma sujeira no cenário, a espantar os fregueses!

Pelo Natal, Maria e Joaquim haviam discutido violentamente porque ela dera uma moeda à  pobre.

–  É uma boa ação, homem, quem dá aos pobres, empresta a ...

–  Tu és tonta, Maria! Dando pérolas a porcos, é o que fazes! Uma mulher forte, mocá, que vá  trabalhar, a vagabunda!

E agora, ai, Jesus, que coisa mais sem sentido, Maria a ver o seu homem a fazer caridade!

Joaquim voltou com o jornal na mão, cenho franzido. Debruçou-se ao balcão pensativo e dali a instantes retirou-se para dar um telefonema.

Maria distraiu-se a ler o jornal, vendo na primeira página a foto de Luís Carlos, mais um bebê desaparecido. Seu pai, orgulhoso, gastara um filme inteiro com ele e o jornal publicara em destaque uma das fotos do bebê.

–  Maria, escuta bem o que te digo, a criança raptada está aqui na esquina.

Maria assustou-se. Que coisa absurda Joaquim estava a dizer! Depois ficou a pensar – a criança  estava sempre quietinha, não chorava, sempre tão miudinha, talvez nem fosse mesmo a mesma criança. Maria sentiu um arrepio de horror quando Joaquim lhe contou:

–  Ela mesma me disse hoje, quando eu lhe perguntei, que a criança ainda não tem uma semana de vida.

Quarenta minutos mais tarde, Luís Carlos mamava guloso nos braços da mãe e o delegado. Fontes interrogava a miserável algemada à sua frente.

–  Sei de quadrilha nenhuma, não, seu dotô. Só sei do Mosca.

A mulher ganhava por dia entre R$ 300,00 e R$ 400,00, pois seu ponto era "quente", em pleno coração do Gonzaga. O Mosca ficava com quase tudo e ainda se dava ao desfrute de usá-la e de espancá-la.

–  Sei dele, não, seu dotô.

O delegado Fontes se controlava a custo. A mulher à sua frente era uma deficiente mental, mas, sem dúvida, através dela chegariam ao Mosca, quer ela colaborasse ou não.

Na mesma noite o Mosca estava atrás das grades.
 
 

* * * * *



O tal Mosca, desempregado há cerca de um ano, trabalhara longo tempo em hospitais. Montara  um esquema lucrativo, distribuindo crianças em pontos movimentados da cidade. Ele encarregava-se de  encontrar as crianças, distribuí-las entre as mulheres, arrumar os tranquilizante para ser misturado às mamadeiras e "desaparecer" com os doentinhos... Chegava a arrecadar R$ 3.000,00 por dia com este esquema, o que era mais lucrativo e menos arriscado que tentar vender as crianças ou pedir resgate por elas.

 

* * * * *

 

No noticiário das oito, tanto o olhar do delegado quanto o de Joaquim estavam assim parados e opacos, que é como ficam os olhos dos homens que não conseguem chorar.

A nação inteira emocionou-se com o fotógrafo e a esposa, pelo reencontro do filho  desaparecido.

A polícia fez uma "limpeza" em regra entre os mendigos da cidade e cinco outras crianças foram  reencontradas e devolvidas aos pais. Infelizmente, nem todos os casos terminaram desta forma feliz.

E tudo se esclareceu porque Joaquim perdeu a hora, deixou cair o troco e ao olhar o pequenino que chorava, lembrou-se da discussão que tivera com a mulher às vésperas do Natal.

Maria ficara comovida ao ver o inocentinho, tão pobrezinho como o Menino Jesus. Que mais  Maria dissera durante aquela briga? Joaquim recordava-se de cada detalhe porque dava-se muito bem com  a mulher e raramente se desentendiam. Ela dissera que os olhos do garotinho eram idênticos ao de Pedrinho, o filho mais velho deles, quando guri –  redondos, grandes e brilhantes. E os olhos de Pedrinho pareciam duas jabuticabas. Pretos!

Pretos, e não azuis!

 
 

As pessoas, ocupadas consigo mesmas, podem passar dias e semanas pela mesma  mulher esmolando na esquina e nem reparar que o filho que ela segura eternamente nos braços não cresce nem se desenvolve. Porém, quando esta criança, que tinha os olhos pretos, aparece de olhos azuis, até mesmo uma pessoa simples e distraída como o Joaquim acaba por perceber que, ao invés de uma criança, são na realidade duas. A inevitável pergunta "o que aconteceu com a criança original" nos leva a deduzir todo o horror desta abominável trama.
 
 

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