Capítulo 2
A Gênese
Muito bem antes daquela fatídica manhã em que o estrelismo
subiu à cabeça de Silveirinha e ele acordou pensando que
era Deus e que poderia voar, se atirando em vôo cego do vigésimo
quinto andar, ele também acordou em uma manhã de inverno
pensando que era escritor. Sentou-se à beira da cama, acendeu um
cigarro, e se pôs a divagar sobre sua nova descoberta. Anteviu seu
nome no Caderno Dois dos principais jornais do país e até
teve um relampejo visionário de um bate-papo com os seus colegas
acadêmicos da casa de Machado de Assis. Nessa época, Jorge
Amado ainda era vivo e Silveirinha discorria sobre a decadência cacaueira,
embora não fizesse idéia de como era a lavoura do cacau no
princípio nem no meio e nem no fim, muito menos para que servia
tal fruto. João Ubaldo Ribeiro, sempre irreverente e alegre, contava
causos dos seus tempos de ilhéu itaparicano e o nosso herói
ria às cântaras, demonstrando total intimidade com o escritor
baiano.
Silveirinha morava sozinho. Não porque quisesse, mas por incapacidade
ou timidez, talvez. Uma vez resolveu investir em uma vizinha assanhada
que ficava na portaria do prédio dando bola pra gatos e cachorros.
Levou dois dias escrevendo uma carta-poesia para a sirigaita, deu cinqüenta
mangos ao porteiro para se fazer de portador, e, quando menos esperava,
bateram à sua porta. Era o porteiro que trazia debaixo do braço
um espelho e uma resposta da pretendente. Ansioso e trêmulo, despachou
o portador e abriu o bilhete na ânsia que domina os amantes nos instantes
próximos ao encontro. Á medida que se envolvia na leitura,
seu rosto se fechava em uma carranca de desgosto; seus olhos perderam o
brilho e Silveirinha chorou. Refeito, enxugou as lágrimas e pronunciou
um impropério contra a vizinha e atirou o espelho pela janela, sem
se incomodar com as conseqüências, caso atingisse alguém
lá embaixo. "Velho babão é a puta que lhe pariu, sua
vagabunda!"
Depois desse episódio, Silveirinha nunca mais teve coragem de
encarar uma mulher. Retraiu-se em uma timidez crescente e passou a usar
a mão grande como consolo. Assinou revistas de mulheres peladas,
comprou filmes pornográficos e se cadastrou em sites proibidos para
menores de dezoito anos. Silveirinha finalmente descobriu uma nova modalidade
de fazer sexo sem risco de pegar Aids ou outra doença venérea
qualquer; descobriu também uma maneira de não passar pelo
constrangimento de ingerir Viagra na presença de estranhos. Mesmo
assim, por precaução, usava camisinha.
Levantou-se da cama e olhou para o computador. Agora ele teria uma
outra utilidade, uma função nobre e, como prêmio pela
nova tarefa, ganharia umas memórias a mais. Ligou a máquina.
A placa-mãe fez "bip" e ele sorriu enigmático. Ou triunfal.
Puxou a cadeira e abriu o editor de texto do seu micro. Aquela data era
histórica e merecia uma comemoração. Foi ao bar e
preparou um drinque, esquecido de que ainda não tinha forrado o
estômago. Retornou ao teclado e exercitou os dedos, antes de dar
asas à imaginação.
Ao cabo de duas horas, imprimiu o que chamou de sua primeira obra-prima.
Leu em voz alta e gostou do que ouviu. Entrou na internet em busca de um
site onde pudesse publicar seu texto. Não adiantava escrever e ninguém
poder ler.
Depois de muita procura, encontrou um que achou legal. Fez o cadastro
e enviou o texto, com a promessa de que no outro dia a sua crônica
estaria publicada. Retornou ao micro e passou a dedilhar causos e mais
causos, até esgotar o espaço no HD.
No dia seguinte, ao abrir sua caixa de mensagens, tinha umas linhas
elogiosas de uma escritora daquele site. Retornou a mensagem, agradecendo,
e daí nasceu ma amizade que seria duradoura, se não fosse
trágica. escritora tinha uns contos picantes e Silveirinha,
acostumado ao prazer solitário, se amarrou neles. Imprimia-os e
ia para o banheiro se masturbar, se imaginando o personagem das estórias.
Inicialmente, Silveirinha fazia isso às escondidas; depois escancarou
para a escritora a sua dificuldade em ter mulher e de como estava fazendo
para se virar. A escritora sentiu a vaidade aflorar à pele e uma
pontada de orgulho picou seu coração e ela propôs que
se tornassem amantes virtuais e que ele se masturbasse ali mesmo, enquanto
ela ficava nua, se manipulando com o mouse e descrevendo suas sensações
para ele. Silveirinha achou o máximo. Pela primeira vez, depois
de mais de dois anos, ele iria ter um orgasmo na frente de uma mulher.
A pedido dela, aboliu a camisinha.E por dois anos seguidos eles viveram
assim, se amando no silêncio corrupto dos megabytes internetianos,
vistos apenas pela frieza muda do monitor de vídeo; ela lhe chamando
carinhosamente de Sil e ele retribuindo com o apelido de Formiguinha, até
o fatídico dia em que ele, por um acaso, descobriu que ela não
lhe era fiel e que mentia descaradamente quando afirmava que desligaria
o computador tão logo sentisse o último tremor do orgasmo
contrair a sua vulva e seus pulmões parassem de arquejar. Desesperado,
pulou da janela do seu apartamento, no vigésimo quinto andar, pensando
que era Deus e que podia voar, levando Formiguinha a pronunciar impropérios
de revolta sobre o seu caixão virtual:
– Eu lhe dei chifres e não asas, seu idiota!