Historieta vagamente alquímica - Maria Inês Drummond Fortes

Capítulo  10

O TACHO DE COBRE

 Ode, ókè àró!
Olówwó gìrì-gìrì lóòde, ó gìrì lódè
Ó wà nígbó òrò ode òkè ó dára sáa ló gbéeron
Olowô guirí-guirí lôodê ô guirí-guirí lôodê
Ô uá nibô órô ódé ôkê ô dára xáa lô bérã.

(Cantiga de Oxóssi)

 
Já no carro, a caminho da Igreja, Maria lembrou-se do comentário da garota sobre o padre. Lina lhe havia dito que ela não o veria, pois o padre, este só poderia ouvir confissões, quando se trancava na casinha, a tal, de cortininha roxa. Perguntou, curiosa:

— Cume qui ele é?

— Ele quem?

— O padre, quem havéra di sê?

— Ah... — assentiu Lina rindo, já transformada no diabrete habitual, pois que Maria, de certo se enganara na conta dos orixás da pupila. Eram três e não apenas dois como pensara a coitada... E o terceiro só podia mesmo ser Exu, o terrível.

— Ai credo, Maria... Melhor você nem querer saber — disse a pestinha — Ele é enorme e preto. Muito, mas muito maior que você. E danado de feio! — E arrematou, sem dó:

— Igualzinho a um Orô...

Maria arrepiou-se e perguntou:

— Intão ele tem ódio de todas as muié?

— Não... Isso eu acho que não — respondeu a menina, lembrando-se das manicuras, que haviam aberto seu negócio nas proximidades da casa do padre. Aliás, segundo os cochichos da cidade, sob os auspícios dele... — Nesse ponto, Lina penitenciou-se, ainda mentalmente. — Coitado do padre! Isso é ruindade das beatas. Maledicência — E suspirou: — Mais um pecado que não vou confessar...

— Mas afinal eu não disse nada, só pensei. — consolou-se. E continuou, para Maria:

— Não, Maria, ele parece um Orô, mas só no tamanho, na feiúra e na voz. Na verdade, ele é uma pessoa muito boa. Meio sem noção, mas boa. O problema é que, quando grita, sua voz é terrível e lembra o som de um berrante — e a garota fechou as mãos, uma adiante da outra e soprou entre elas, na tentativa de imitar o mugido arrancado de um grande chifre de boi.

— Trate de ficar quieta! — ralhou a mãe. E, depois disso, a viagem transcorreu em silêncio até a Matriz.

A igreja, tal qual a mocinha previra, encontrava-se quase deserta, e Zé Lopão já estava no confessionário, fato denunciado tanto por um paroquiano ajoelhado diante da cortininha roxa, quanto por um dos gigantescos pés do padre, escapulindo através da portinhola entreaberta. Não havia fila e as pessoas ocupavam os bancos pela ordem de chegada. Mantinham as cabeças baixas, pois faziam seu “exame de consciência”. Maria e Lina, contudo, já haviam cuidado dos seus respectivos exames, pouco antes, na cozinha, e sentiram-se livres para uma voltinha entre os altares. Maria estava encantada.

— São bunitos — disse ela, referindo-se aos santos. Parou, reverente, diante do altar de São Sebastião, e o observou, condoída. Trespassado por um sem número de setas, ele sangrava com realismo por todas as feridas.

— Sei não... — retrucou seu cicerone pouco devoto, sem manifestar a mínima compaixão pelo pobre santo — Parecem assustadores. Além disso, fazem a gente espirrar. As roupas e os cabelos deles são de verdade, e nunca foram lavados. Por isso estão lotados de ácaros, uns bichinhos tão miúdos que não se pode ver. Mas são eles que fazem o nariz da gente entupir. Papai me disse. 

Lina prosseguiu sua preleção anti-santos-de-altar, quase sem pausa:

— Mas há também o bolor. Os santos são feitos de pau, e a igreja é úmida. Por baixo desta montoeira de roupas, aposto como são verdinhos, verdinhos...

— Ah... — suspirou Marião penalizada — e ninguém dá banho neles?

— Nos santos? Acho que não — respondeu Lina, divertindo-se com a idéia. E completou, por sua conta:

— Santo não gosta de tomar banho e, muito menos, de ficar pelado... 

Mas o padre Lopão despachava depressa e elas viram que a mãe já se dirigira ao confessionário. Como o pai só estava ali de companhia, depois desta seria a vez da garota, seguida, naturalmente, por Marião. Maria, que a princípio se acalmara com o passeio, estava outra vez nervosa e morta de medo do Orô.

Contudo, ao ver que sua pupila fora e voltara, aparentemente. sem qualquer dano, encheu-se de coragem, adiantou-se, e se ajoelhou diante da cortina roxa. 

Entretanto, algo parecia não estar correndo muito bem. O padre Lopão, que conhecia seu rebanho inteiro, jamais havia posto os olhos naquela ovelha tresmalhada. Tal desconhecimento o arrancou da modorra, e ele passou a interrogá-la para valer. Constrangidos, os fieis começaram a ouvir as perguntas dele, em tom cada vez mais elevado. Maria, além de ajoelhada, agora estava encolhida, e balbuciando as respostas como podia. De repente Lopão bradou:

— Ô quê?????

Marião levantou-se aterrorizada e, sem olhar para lado nenhum, correu porta afora, célere, apesar do corpanzil. Só conseguiu pensar em abandonar, e o mais depressa possível, a penumbra assustadora da igreja para refugiar-se na luminosidade dourada e segura do adro. 

Segundos depois, a figura imponente do Padre José Lopes deixou o confessionário. Esticando-se o em toda sua altura, percorreu com o olhar os fieis, bestificados. Procurava pela tresmalhada, levantada antes do tempo. Girando os olhos em torno e, não a identificando entre os demais, bradou:

— A mulher que roubou o tacho! — e sua voz de Orô, tão roufenha quanto potente, reverberou no silêncio:

— Volta aqui já, que eu ainda não dei a absolvição! 

Maria, sentada nos degraus do obelisco, que marcava o centro do adro, era a imagem da desolação. Lina, com um braço passado pelo seu ombro, tentava consolá-la, sem sucesso.

— Liga não, Maria... — dizia ela — Isso só aconteceu porque você ficou com medo dele e levantou antes da hora. Ninguém se importa. Todo mundo aqui conhece bem o padre Zé Lopão.

— Dianta não, fiotinha — Marião soluçava, aflita. — Vô tê qui ir m'embora. Quem há-de querer uma nega ladrona em casa?

— De qual nega ladrona você fala, Maria? — perguntou uma voz, atrás delas.

Espantadas, a menina e a empregada voltaram-se e deram com o patrão sorrindo para ambas, com seus dois diabretes dançando no fundo dos olhos, cujas íris eram ainda mais azuis que as turquesas de Oxossi.

— Fique tranqüila Maria — continuou ele — o padre nada disse, e se disse ninguém ouviu. E nem poderia —acrescentou, rindo-se com gosto ainda maior. — Seria um pecado horrível... Segredo de confessionário é coisa sagrada... — Mas acrescentou, parando de rir:

— Vamos para casa. Mamãe já está no carro e vocês sabem que ela não gosta de esperar.

A volta transcorria em silêncio, a patroa, irritada, girava os anéis, enquanto o patrão, aparentemente, se concentrava na estrada. As duas do banco de trás iam jururus, sem saber muito bem como terminaria aquela história.

De repente o patrão falou:

— Maria...

— Sinhô...— balbuciou ela.

— Estive pensando, e já que o padre não teve tempo, acho que eu mesmo vou determinar sua penitência...

A pobre Maria encolheu-se, Lina, porém, sorriu para o pai, pois que sua confiança nele era ilimitada. Mas o patrão continuou:

— Gosto muito de doces feitos no quintal, num bom tacho de cobre. Quero que você me faça uma goiabada cascão e, quem sabe, também uma compota de laranja-da-terra...

— Ah, Dotô — respondeu Maria, com o rosto inteiro brilhando — Faço quarqué doce qui o sinhô quisé... Bananada, pessegada, marmelada, doce de jaca.. Quarqué um, pois o sinhô é fio de Oxalá e bão qui nem ele...

Mais tarde, depois do jantar e da prosa de sempre, na cozinha, com Marião, ao subir para dormir, Lina viu que a saleta diante do quarto dos pais estava entreaberta, e eles falavam sobre Maria. Acrescentando a bisbilhotice aos seus já inumeráveis pecados do dia, parou para escutar.

— Não e não — dizia seu pai.— Marião fica e não se fala mais nisso. E então — continuou ele para a mulher, num tom de voz mais doce e menos incisivo — Você não acredita tanto nos anjos? Maria é um deles. Ou será que você não acredita em anjos pretos? Vamos, meu bem... Desamarra o burrinho, e vamos dormir.

— Francamente, — respondeu ela — você nos transformou em receptadores de um tacho roubado...

Lina tratou de seguir sem ruído até o próprio quarto, mas ia aliviadíssima. Sabia que apesar do pai mimar a mulher como se ela fosse um biscuit, seu “não” era igualmente irreversível e definitivo. Maria estava salva e esta história bem poderia terminar por aqui. Infelizmente, nenhum final, seja ele alegre ou triste, pode ser também definitivo. O tempo é feito de uma fileira infindável de “acontecências”, coladas umas nas outras...

Passaram-se uns poucos anos. Lina e seus irmãos foram enviados à Capital, para prosseguirem os estudos. Agora só vinham em casa aos fins de semana, mas não todos, pois andavam envolvidos com suas novas vidas.

Juca e Chico casaram-se num mesmo dia, devidamente embonecadas, presumivelmente, pelos noivos. Não deu para se realizar a cerimônia em dias diferentes, pois seus bonequinhos cresciam depressa. Como seria de se esperar foram devidamente apadrinhadas pelos patrões.

Na casa substituiu-as uma prima, já mais velha, e sem qualquer interesse por rapazelhos. Da parte deles, também, já não havia qualquer necessidade ou empenho por empregadinhas.

Stelita, o acólito-jabuticaba, continuava seu nada fazer de sempre, mas dera de engordar. Atualmente, se encolhesse as pernas, seria bem capaz de rolar como uma bola de gude.

Por sua vez, Marião, embora saudosa da sua pupila-diabrete, era feliz do seu jeito. O bisavô morrera anos antes e, depois disso, ela nunca mais voltara à Vila da Biboca, onde seus parentes também aumentavam de número. À igreja também não... Em compensação, fazia doces, cada vez melhores, no tacho de cobre, e perambulava pelo bosque, pois, sem as crianças, o tempo sobrava. Esquecera de vez o primo, mas jamais pudera abandonar a cachaça. E por conta do tabu quebrado, também não pudera oferecer a Exu o ebó determinado pelo babalaô.

Um dia de dezembro, casa movimentada pelas férias, a família levantou-se, e o café da manhã ainda não estava servido, como de costume. A prima das gêmeas, bem mais competente do que as duas juntas, tratava disso, ajudada, mal e porcamente, pela inútil Stelita.

— Onde está Marião?— perguntaram todos.

— Nóis bateu na porta dela, e ela não respondeu. Deve di tá beba — respondeu a jabuticaba.

Pai e filha correram ao quarto de Maria. Bateram e não obtendo resposta, abriram a porta e entraram. Encontraram-na deitada, inconsciente, com os olhos revirados. Jazia com a pele de um cinza agourento, porejada de suor gelado, e estava banhada em sangue. Deus meu! Quanto sangue... Parte dele coagulara, tomando a cama e os lençóis, mas parte escorrera pelo chão, numa poça enorme. Uma última golfada de sangue vivo salpicou as paredes, já manchadas. Lina, na valentia dos seu dezessete anos, pegou uma toalha e tentou limpar o rosto e a boca da amiga, no esforço inútil de deter o que já não podia ser detido.

— Vou ligar para o Hospital e pedir uma ambulância — disse ela. O pai, porém, atalhou com firmeza:

— Não dá tempo, filha. Ela está chocada. Larga esse pano e vai correndo chamar seus irmãos e o Antônio Felix. Nós vamos levá-la.

Assim foi, e quando chegaram ao hospital, Maria ainda respirava.

— Etilista crônica, não é? — comentou o médico que os recebeu.— Cirrose hepática e hemorragia secundária às varizes de esôfago. — diagnosticou ele. E complementou, para evitar maiores expectativas:

— Estes sangramentos costumam ser cataclísmicos e fatais.

Mesmo assim, espetaram seus braços, no esforço de repor o volume perdido e lhe transfundiram sangue fresco. Alguém lhe enfiou, garganta abaixo, uma sonda, em cuja extremidade, havia um balonete inflável. Na altura os recursos eram limitados, e nada além daquilo restava a fazer. Uma hora depois, Maria morreu, sem recobrar a consciência, e o Antônio Felix levou pai e filha de volta para casa.

Sem Maria, os orixás, pouco a pouco, abandonaram o quintal, o jardim e o bosque e a magia se foi. Verdade que Exu, em suas idas e vindas, de vez em quando, ainda tirava uma soneca na moita das bananeiras e, às vezes, depois da chuva, Oxumaré, a serpente colorida que morde a própria cauda e é tão velho quanto o mundo, se mostrava no céu em todas as cores do arco íris. Marião, porém, já não estava lá para saudá-lo, e ele logo se desvanecia, desanimado.

Ah, Maria... Axé!

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Nota:
Esta série inteira é dedicada à Maria, minha adorada “Marião”, que tirando as licenças da ficção, existiu de verdade e viveu o paradoxo de ser ao mesmo tempo um anjo e uma criatura de carne e osso. A epígrafe é uma saudação a Oxossi, em iorubá e fala da sua habilidade como caçador, da força de sua voz e da presteza com que suas flechas abatem a caça.

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