Legião - Sergio Pires Jr.

Capítulo 5

             Fiquei parado junto à porta durante um tempo.
             Laura chorava baixinho, encolhida num canto da parede. Fui até ela e enfiei a mão em sua boca para abafar os gemidos e tentar captar algum som.
             Silêncio.
             Por um breve momento pensei na possibilidade de Paulo ainda estar vivo.
             E, como se pudesse ler meus pensamentos, Rubens gritou:
             — Fofonho está morto, Denis! Foi preciso, está escutando? Tinha umas Coisas controlando eles e está controlando você também. Vocês não puderam enxergar, mas eu pude. Vou acabar com tudo isso cara. Vou te livrar desse Demônio nojento... — fez uma pausa — Você e essa putinha...
           
Ouvi um barulho forte. Ele havia aberto a porta do primeiro quarto e se aproximava pelo corredor.
             Laura desesperou-se. Apertei mais ainda minha mão em sua boca. Apertei tão forte que pude sentir os dentes contra os nós de meus dedos.
             — Aqui não está... — disse ele — Onde você se meteu, hein? Apareça, quero apenas tirar essas Coisas de você...
             Abriu a segunda porta.
             — Tsc, tsc, tsc... Acho que agora sei onde você está.
             Fechei os olhos e abracei Laura. Vi a maçaneta mexer-se e meu coração quase parou.
             Foi quando ouvi vozes que vinham da entrada do apartamento.
             —  Abram! É a polícia.
             Rubens largou a maçaneta e correu para a sala.
             — O que vocês querem? — gritou.
             — Abra! Ou vamos invadir.
             Abri a porta vagarosamente e fui até o corredor. Rubens estava de costas.
             Paulo Fofonho jazia estirado no chão com um tiro no abdômen e outro no olho direito, que fora transformado numa cratera ensangüentada.
             — Vocês não entendem, vão embora — disse Rubens com a voz fraca, como num doloroso lamento — Não sabem nada... Os demônios... Aquelas Coisas verdes... Ah! Que se fodam!!
             Os policiais invadiram.
             E Rubens atirou.
             Eram dois policiais e o primeiro foi recebido com um tiro entre os olhos assim que entrou.
             O segundo policial reagiu, mas conseguiu acertar-lhe apenas o ombro esquerdo.
             Rubens não errou. Seu tiro furou em cheio a jugular do jovem policial que oscilou por alguns instantes e caiu feito uma laranja podre, com a farda empapada de sangue.
             Rubens observou os quatro cadáveres estirados entre poças vermelhas que se formavam no chão da sala. Houve um pequeno momento de lucidez em seus olhos.
             Foi só por um momento.
             Enfiou o revólver na boca e atirou.
             Num desespero louco, corri para o quarto e arrastei Laura para fora.
             — Vamos — gritei — Outros policiais devem estar vindo.
             — Deus... — balbuciou ela ao ver os corpos. Ajoelhou-se ao lado de Paulo e vomitou.
             — Vem — disse eu obrigando-a a levantar-se — A viatura estava fazendo ronda e ouviram os disparos. Os outros vão chegar lo...
             Não consegui continuar.
             E é nesta parte que devo jurar perante Deus-Todo-Poderoso duas coisas: A primeira é que não cheguei nem perto daquela coisa que Rubens injetou na veia.
             E a segunda é que eu vi aquilo que desencadeou toda a paranóia de Rubens.
             Eu estava vendo a Coisa.
           
Não possuia mais que 50 centímetros e estava sentada em cima da TV. Sua pele esverdeada e escamosa cobria o corpo e três dedos em cada uma das mãos em forma de garra. Os olhos avermelhados e opacos fitavam-me atentamente enquanto o rosto enrugado exibia uma boca escura com dentes disformes. Um filete de baba escorria pelo canto e o fluxo aumentou quando a boca entreabriu-se na tentativa de um sorriso sarcástico.
             — O que foi? — perguntou Laura.
             Somente eu enxergava. Balancei a cabeça, como um bêbado que tenta ficar sóbrio e olhei novamente.
             A Criatura ainda estava lá.
             Um vulto me chamou a atenção e percebi uma segunda criatura como aquela, escondida atrás do aparelho de som. Esgueirou-se sobre a estante e com um salto rápido, quase felino, postou-se ao lado daquele que parecia um irmão. Não demonstravam intenção nenhuma de saírem dali e nos atacar. Mesmo assim caminhei em direção a saída lentamente, sem tirar os olhos daquelas Coisas.
             — O que foi? — insistiu Laura.
             — Nada. Vamos embora — falei enquanto caminhava lentamente em direção a saída.
           
Antes de sair, dei uma última olhada. Os pequenos Demônios haviam sumido.
             Ilusão? Sinceramente, não sei dizer.
             Descemos pelas escadas. A portaria estava deserta.
             José poderia ter fugido com o som dos tiros. Àquela altura, não saberia dizer.
             Quando saí do prédio, avistei a viatura dos policiais e um Furgão branco encostado na calçada. Apenas quando dobrei a esquina, me dei conta do que vi.
             Aquele era o Furgão do sujeito que vendera as drogas para Rubens.
             — Espere aqui — falei.
             Fiquei atrás da parede do prédio e avistei o sujeito de casaco escuro entrar apressadamente no prédio, carregando algo embaixo dos braços.
             Rezei, naquele momento, para a polícia aparecer. Nada aconteceu.
             Depois de alguns minutos, o sujeito saiu calmamente pela entrada do prédio, arrastando cinco sacos grandes de lona. Eram os corpos de meus amigos e dos policiais que estavam dentro daqueles sacos mortuários. Abriu a parte traseira do Furgão e, com a mesma força sobrenatural, arremessou-os para dentro. Aquilo não podia ser humano.
             Ouvi as sirenes dos carros de polícia ao longe.
             O sujeito entrou no veículo e desapareceu logo que dobrou a primeira esquina.
             O som das sirenes aproximava-se mais.
             Puxei Laura pela mão e fugimos. Corremos durante um bom tempo até estarmos longe o suficiente. Paramos com a respiração ofegante. Abraçamos-nos.
             E choramos.


             E esse foi o fim.
             Nunca contei para meus pais o que havia acontecido. Disse que não estava junto dos caras naquela noite e dei o assunto por encerrado.
             
Eu e Laura continuamos juntos por um bom período.
             Não houve paixão. Não houve amor.
             Houve apenas a necessidade de mostrarmos um pro outro que tudo aquilo acontecera e que não estávamos loucos. Sua presença me confirmava isso.
             E foi bom ter dormido com ela durante aquele tempo.
             Hoje estou só, tenho um bom emprego e uma casa e tanto. E acho que basta de relembrar. Chega de olhar para baixo do tapete.
             O que interessa mesmo é o que fez com que o tapete fosse levantado.
             Do outro lado da rua, observo a casa de Paula Mariano. É uma garota loura de uns vinte anos. Pra mim não passa de uma piranha de boca suja.
             Seus pais viajaram neste fim de semana e ela andou fazendo uma festinha com os amigos. Muito álcool e muitas drogas.
             Há uma hora, escutei uns gritos estranhos vindos de lá. Olhei pela janela e vi um Furgão branco estacionar em frente a casa. E eu sei quem entrou lá.
             Está demorando um pouco mais do que aquela vez há vinte e cinco anos.
             Mas o sujeito vai sair. Humano ou não, ele terá de sair.
             Enquanto isso, eu verifico a munição da minha pistola 765. E quando ele aparecer, estarei aqui.
             Esperando...

 

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