A silenciosa imobilidade une cachorro e caça. As duas cabeças estão penduradas no mesmo olhar fixo. Uma espada invisível cruza as criaturas no instante decisivo da tarde, até agora muda. O fio reúne as atenções terminais da perseguição entre urtigas. O perdigueiro treme porque o tempo desanda e a impaciência começa a devorar sua certeza. Mais um segundo e a presa desatará o vôo rasteiro, que vibra abrindo um rasgo no campo.
A matraca da perdiz acorda então a fuga na estação. Abre um claro entre pastagens altas e espanta o susto preparado pelas cobras. Não há mais nada ao redor do que o troar de forças: meu pai de cartucheira cruzada no corpo; sua arma de extremo soco, que se dá o luxo de emitir o tiro arisco, capaz de extrair a cabeça da ave em pleno vôo; sua visão circunflexa e longa, como luneta de navegador. Eu estou um pouco atrás, sentindo o cheiro de rebanhos prudentes, gado afastado do miolo do drama, recolhido ao remanso de um tufo de umbus ocupando extremos, lá onde o sol irá se pôr, ao lado das corujas e sob o luar crescente.
Aquela terra não nos pertence. Fica atrás das cercas que ultrapassamos com nossas calças de brim, alpargatas rotas, chapéus de feltro. Somos feitos de palha, como os bois de festa. Roçamos as mãos no pasto para colher talos verdes, que mascamos enquanto os pés afundam em barros ocultos. Não é um passeio. Somos uma caravana de tormentos. Nenhuma carne está a salvo quando seguimos o pai concentrado na sua guerra ofegante. De vez em quando, ele concede o privilégio de uma bandeja, a ave muito próxima e desatenta, capaz de levar o tiro de um de nós, herdeiros sem treino. Basta apontar para a vítima em movimento. Desde que ela não fique imprestável para o forno, por força do chumbo espalhado a esmo, fruto de pontaria trôpega.
Prefiro não atirar. Estudo o mistério do rastreador, que cheira o caminho traçado pelo medo. Ninguém enxerga o que ele vê. Feito de bronze, aguarda a ordem de avançar. A voz do pai é um clarim de batalhão, identificada pelo tom de mando. Sob aquela guarda conheci as porteiras das estâncias, os arroios escondidos em matos, as corredeiras de dourados na madrugada sem estrelas. Aprendi a ficar quieto como um anzol forrado de piavas, à espreita do surubi gigante, o que irá afogar dez bóias do espinhel ao mesmo tempo.
A pele precária dos pés criados em asfalto conheceram a brutalidade dos barrancos, os charcos do inverno, os insetos do crepúsculo, as traíras onde todas as linhas tropeçavam, enredadas pela mão invisível de um destino feito de espumas. Aprendi a fazer fogo e a esperar os adultos voltarem com sua algazarra e assim poder dormir, sem a urdidura dos fantasmas. Vi tanto amanhecer que desandei. Descobri que as cidades são apenas acidentes e que nascemos todos em campo aberto.
Fomos recolhidos cedo às paredes. Viciamos em tetos, sofás, fios, talheres. Mas basta o fogo no chão em nossa frente, num dia qualquer da infância, para que ressurja o sopro da sementeira original da raça que negamos. Somos bugres de polainas, mas se topamos na raiz podre que desperta os marimbondos, saberemos como agir, em direção às sangas. Lá vamos mergulhar o nosso esboço. O que nos desenhou para sempre.
Nem é preciso mais o pai com a mão no cartucho feito na véspera, com pólvora comprada a granel, bucha improvisada, espoletas secas. Já sabemos o caminho da roça. Vestimos a farda dos acampamentos e vamos, reunidos, seguindo as pegadas do Tempo. Estamos de olho no horizonte. De lá virá o Quarto Crescente, anunciando a eternidade. |