O TEMPO DO ACONTECER E SUAS VARIÁVEIS
Se, de início, o título da obra pode parecer estranho, convém ressaltar que esta estranheza será uma constante neste primeiro livro de contos de Flavio Gimenez, como uma forma de insurgir-se contra os acomodados e robóticos padrões de comportamento, contra a avassaladora "força do hábito" que embaça as horas da vida, reduzindo-lhe o brilho. Sua prosa tem sempre um quê de inquietante, de tensão, de desconforto, um certo clima noir que faz com que o leitor pressinta o "bote", o ataque-surpresa a qualquer momento. Esta é a estranheza de que falo: de algo que se encontra fora do seu lugar habitual, fazendo com que nossa atenção se desloque do discurso corriqueiro e se depare com um ângulo inusitado: um sonho entrando pela realidade, um príncipe-filósofo imprecando contra seu "reino", que o marginaliza, ou um crocodilo criado dentro da piscina de uma casa. Partindo para a realidade fantástica, um dos contos que mais gosto é o do Pacman antropofágico, o personagem do game atacando suas vítimas em plena rua ou dentro de casa, nas suas horas de repouso.
E há também o tempo — como sugere o do título da obra —, não propriamente o cronometrado por máquinas e engrenagens, mas sim o que acompanha os bioritmos naturais, com suas estações de chuva, de risos, de espera, todas borbulhantes de emoções, com seus ciclos variando conforme as circunstâncias ou as escolhas feitas; não o tempo das tarefas e compromissos agendados com hora marcada, mas o vivencial. Na natureza, a água, através do movimento permanente de combustão, transpiração, evaporação, precipitação e infiltração, é a responsável pela respiração do planeta; na literatura de Gimenez, ela oxigena a mente do leitor, embora o lembre a todo instante que, formada de hidrogênio, a água também contém um elemento inflamável e incendiário... Neste sentido, a prosa de Gimenez transforma-se muitas vezes em gelo que queima, em água que pega fogo, em redemoinho que, de súbito, suga a calmaria aparente.
Ler O Relógio das Águas é viajar, ora por terra firme, ora por água, valorizando o movimento de cada folha, a ondulação de cada tentáculo, o surgimento de cada fruto, de cada onda, de cada peixe, de cada veio, de cada punhado de areia ou grão, é entender a órbita dos planetas, a posição das estrelas, a direção dos ventos, a influência das marés solares e das fases lunares, a miragem, a noite, o farol, a fênix, o desejo, a casa, o sótão, o silêncio, a solidão, o pescador, o escritor, o encontro e o bicho-de-sete-cabeças da separação, a cobra coral, o gosto da maçã. E na dimensão deste tempo paradoxalmente imensurável, nesta visão holística do mundo, sobressai a habilidade do autor na integração do micro ao macrocosmos, fazendo com que vida e morte, luz e sombra sejam matérias vivas deste todo orgânico.
Paracelso, já no século XVI, afirmava que um médico precisava mergulhar em muitas áreas de conhecimento: "Saber o que é proveitoso, o que é prejudicial; o que é visível e o que é invisível; as benzeduras e sua força; o que é útil ao pescador, ao seleiro, ao curtidor, ao tintureiro, ao carpinteiro, o que produz cada profissão, o que é cada uma das profissões; o que pertence à cozinha, à adaga, ao jardim, o que sabe um caçador, o que sabe um alpinista, o que é Deus, satanás, o que produz a doçura e a amargura, o que é paladar, o que é morte, o que há na mulher, o que há no homem; o que convém a um itinerante, a um sedentário; a diferença entre o vermelho e o magenta; por quê o curto e o comprido; o que se requer para a guerra e para a paz; e o quê significa este conhecimento em todas as coisas". É é exatamente esta fantástica proeza que o médico Flavio Gimenez consegue realizar em sua literatura.
Leila Míccolis |