O apaixonado
Decerto exagerei quando me pus a andar sob a chuva, entre as árvores perto de um parque próximo de sua casa. Vamos convir que apaixonados fazem qualquer coisa, embora tenhamos de respeitar certos limites.
Daí a pular a cerca de tua moradia, arriscando-me a morrer espetado nas lanças do portão é outra coisa. Não que as mordidas do cão de guarda não tenham doído nada, afinal vinte pontos na coxa e dez no antebraço não vão me fazer cair de quatro. Não.
Porém, entrar em tua casa usando uma chave mixa, presente de um gatuno que eu conheço de outras eras é um passo mais ousado ainda; entrar como um gato oculto nas frestas de sombra de tua sala, silencioso como um réptil e atento como um morcego ao menor ruído é mais ousado ainda. Só ouvia o tamborilar do meu sangue no tapete de tua saleta de estar, fruto das mordidas de teu pequeno Rottweiler.
Subir a escada que leva ao teu quarto, grudado como uma lesma à parede foi outro ato de bravura e desafio, decerto já despido de qualquer consideração ética e/ou filosófica. Saber que teu quarto fica à esquerda dos outros foi só lembrar de teu cheiro maravilhoso, de teu perfume que exala e demarca os territórios por onde passa tua figura.
Abrir a porta suavemente, com mãos de salamandra, olhar-te no escuro com olhos de coruja e ouvidos atentos como um tigre foi mais fácil ainda.
Nada se compara a observar o doce sobe e desce de tua respiração serena, sentir teu hálito perfumado enchendo minhas narinas obscenas, preenchendo o quarto de tua alma caridosa e cheia de alegria.
Ver-te acordada, perguntando ao frio ar da noite, com olhos assustados como os de uma corça: “Quem está aí?” foi quase um apelo sensual e de uma textura que só tua pele aveludada poderia ter.
Daí a fugir como um pássaro ferido, pela mesma porta que entrei, fechando-a rapidamente e sem ruído foi como um sonho; descer as escadas rápida e calmamente foi como um raio; sair pela porta e espantar com um grito teu cachorro foi como um trovão e pular novamente de volta a grade sem rasgar a outra perna foi a última ousadia não sem antes ver tua janela se iluminar e ouvir teu grito novamente: “Quem está aí?” e notar as outras janelas iluminando-se e decerto as outras pessoas olhando minhas marcas em toda a parte da sala, da escada, sem nenhum outro sinal de minha presença.
Ficar entre as árvores e lembrar teu perfume, antes de perder a consciência, foi o meu consolo final. |