A fonte
Pássaros voam na manhã clara. Os sons deliberadamente se alongam quando você acorda, sem senso de onde está ou do porquê de estar ali. Apenas existem os sons exasperantes do passaredo, da água caindo nas folhas das árvores, gotas que se adensam da umidade e se espraiam nas copas que sombreiam a estrada, o caminho por onde você passou horas atrás, para finalmente se estender e ver as estrelas que se afirmavam no frio céu distante. Você podia divisar as Nuvens de Magalhães, as Três Marias, subindo lentamente, enquanto giravam a esferas da orbe que os antigos acreditavam ser de cristais sobrepostos que deslizavam entre si como em imenso maquinário, onde de um lado escorregava a lua, do outro o sol, mais além o firmamento: tudo girando em torno da Terra. O Antropocentrismo, o Geocentrismo, o sol gira em torno da terra, tudo gira em torno de nós, afinal, tudo é relativo. Os pássaros se escondem dos finos raios de sol que expunham suas plumagens coloridas e seus bicos longos, como se pudessem ocultar sua própria beleza, sem alarido algum, sem peso nos galhos.
Não admira Ícaro ter tido a ousadia de tentar voar, porém sem seguir os conselhos do pai prestimoso. Eu já prefiro o Caminho do Meio e é por onde sigo, com meu cajado, em meio às clareiras que surgem do nada e onde posso ver as folhas secas vindas do alto, vez em quando batidas pelos turbilhões de vento que anuncia algo de chuva, as folhas se erguem como que por mágica e a luminosidade se altera, filetes de luz penetram entre as folhagens e criam a ilusão de que há duas florestas, a de cima e a de baixo, que é onde caminho e procuro meu sentido. A de cima é reservada aos deuses alados.
Alguém poderia afinal perguntar, o que faz um homem andando por uma floresta tendo dormido ao relento sob as esferas de cristal do mundo? Por qual razão um homem pode estar assim tão distante de sua origem, procurando um sentido para sua vida no vento de uma chuva em meio à mata? Fui colocado aqui, dentro de um plano que talvez seja maior do que o das próprias árvores, dos seres inanimados que habitam o solo (pedras, gravetos, minúsculos cristais, terra cheirando a chuva antiga), maior do que o das orbes que giravam em perfeita equação até há certo tempo, até que um homem (sempre um deles) provou que todavia se move. O plano, a esfera, Eppur se Muove, as folhas, as borboletas azuis que desfilam sua magnificência entre os arbustos, todavia tudo se move e eu com o cajado, busco o sentido que talvez não seja o meu, mas o de todos. Ah, pensar que Deus é um ser talvez de barbas brancas, pensar que ele possa estar bem ali, adiante na próxima clareira, bem ao alcance de meu cajado, sorrindo talvez à beira de um lago onde saciarei minha sede; o eterno retorno da ilusão de que se pareceria conosco.
Então caminho e meus passos esmagam as folhas que caíram há séculos dos galhos do alto, sigo a trilha margeada por antigas pedras cheias de musgo, com marcas que denunciam a presença humana ancestral ali, talvez a de um outro viajante que procurou a si mesmo sem se perder, em um sentido mais vasto, mais perfeito. Talvez ele seja o autor dos rabiscos em alguns troncos com indicações que eu sigo sem temer porque sei que passou por ali alguém e mais outro e mais outro, como uma multidão de peregrinos perseguindo a verdade mais justa, o segredo mais oculto, o cristal mais luminoso. Esse talvez o sentido da busca, ouvir os estalidos da batida dos pés, ouvir o próprio coração pulsando no peito, seguir o rumorejar das águas.
Até que se chegue à própria fonte. |