O RELÓGIO DAS ÁGUAS |
FLAVIO GIMENEZ |
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Suave é a Noite
A fumaça dissipa-se lentamente em frente aos olhos dos dois. Eles se miram de longe, eles já se encontraram, mas sabem dos rituais que devem ser seguidos, então a fumaça sobe ao teto do bar encravado na rua mais estranha do mundo que é aquela, um lugar por demais inverossímil para que eles se encontrassem, mas como a vida nos prega surpresas, afinal...
Ele está sozinho, ela tem amigas por toda a parte, mas não deixa de olhá-lo, como se ambas as peles se reconhecessem à distância um do outro; seus movimentos não passam despercebidos, o sorriso maroto que ela tem não deixa de encantar os seus matreiros olhos de lince, caçador noturno que agora está à espreita de uma brecha dela, um convite que possa surgir na imensa abóbada azulada que pisca com as luzes rítmicas que o entontecem e o enchem de ternura.
Ela é a própria candura, sua alva pele de pêssego (ele imagina a textura) arrepiada pelo contato de seu olhar esperto e luminoso, ela espera um pouco e traga o cigarro profundamente e num movimento que transparece a tensão do momento, solta ao ar uma lufada de sensual fumaça que o alcança e inebria. O sinal acontece afinal, ele apenas aguarda num tempo que parece infindável a próxima jogada de sedução da moça que se preza tanto, ela que se desvela em segredos com todos, ela que se resguarda por tão pouco, mas num meneio de cabeça deixa entrever seu lindo colo e uma jóia que deve ter seu nome gravado.
Lá está ele, com um copo na escuridão da mesa, sozinho e ela linda e sorridente lhe lançando fagulhas de sonho e centelhas de incerteza, sim, incerteza, ele nunca sabe se é dela que vem o perfume ou do ar abrasado que a cerca, mas os risos altos sufocam qualquer deslize e ela, num olhar o convida ao segredo que agora eles dividem, apesar do amontoado de corpos naquela mesa, mesmo no meio da multidão anônima que os despersonaliza; mesmo naquele barulho contínuo é ele que espreita e é ela que se revela em felinos açoites, num ardor quase visível, na curvatura de seus quadris, num detalhe de seu lábio carnudo, no lenço carmim que se espalha em suas coxas.
Lá fora uma lua absurda tinge os mínimos objetos de suaves contornos e ele percebe a curvatura do mundo em um céu de poucas nuvens, uma noite imensa. Ele então fecha os olhos com força e se pergunta:
– Será que você existe mesmo ou é meu sonho? |
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