Bicho de sete cabeças
Seu rosto apareceu num clarão avermelhado enquanto ele sorvia a fumaça do cigarro desaforadamente, num desafio franco aos conselhos escritos nos maços e ao que seu médico dizia nas consultas em que ele teimava que ia parar de fumar e nunca conseguia cumprir o proposto e prometido. Ele temeu que a brasa pudesse denunciar sua presença ali, em meio ao caos de carros estacionados e carrinhos de mercado e gente passando. No entanto, tudo era por uma boa causa, afinal ele tinha de conferir com seus próprios olhos o que lhe fora dito, à meia voz, num dos lugares que costumava freqüentar:
– Fique esperto. Sua gata tem um quê de misterioso.
– Como assim?
– Veja com seus próprios olhos.
Ele era mais experiente, mas nunca havia passado por isto. Justo ele, que já enfrentara tantas lutas, tantos casos misteriosos, justo ele! A sanha de fumar mais um cigarro dominou-o e ele não teve alternativa senão saborear mais um. Enquanto esperava, escondido no carro que alugara, com filme escuro nas janelas, via passarem miríades de pessoas, com incontáveis pendências talvez até maiores do que as suas. Viu passar uma menina linda, loiríssima, de celular em punho e olhos maravilhosos. Os cabelos encaracolados batiam em suas costas e ela sorria de uma maneira tão especial que ele se viu sorrindo junto, olhando o espetáculo de sua presença, enquanto ela abria delicadamente a porta de seu pequeno carro. Era uma bela visão e lembrava a de sua gata a quem espreitava agora... Viu uma velhinha, só, carregando uma sacola de verduras, ela seguramente devia ter seus setenta, oitenta anos? Ela se curvava e ele se admirou quando ela entrou em um carro e saiu dirigindo com extrema destreza para sua idade.
Viu um rapaz remoendo talvez a idéia de seu suicídio, pois seus olhos estavam vermelhos. Pensando bem, poderia ser um viciado em drogas pesadas, ou talvez um coitado acometido de conjuntivite. O fato é que ele chorava! Ele, do fundo de seu esconderijo, voava nas expressões, umas sofridas, outras compenetradas, outras de felicidade pura, no encontro com o amado ou amada, no desencontro de quem se perdeu ou no reencontro de quem se achou depressa. Crianças corriam soltas, mães ralhavam com as crias, ele a tudo observando. Pensando bem, ele se sentia um privilegiado apesar da sensação devastadora de estar perdendo o que de mais valioso lhe fora oferecido até então.
– Você ficou sabendo de alguma coisa?
– Não vou lhe dizer absolutamente nada. Tem coisa que é melhor conferir, senão vira um bicho de sete cabeças. De vez em quando é melhor saber por si mesmo o que se faz com a honra alheia. Não sou eu que vou dizer o que você tem de fazer. Veja por si mesmo.
Lá estava ele, tentando parecer calmo, tentando se convencer do que já achava que acontecia faz tempo, mas que só agora resolvera deslindar. Precisara ser alertado sobre isto! Justo ele!
– Justo eu!
Era um grande amigo o que o alertara. Era um grande camarada, já o ajudara a sair de algumas enrascadas mas dessa, só ele mesmo teria de pegar o fio da meada e desatar o nó.
Pareceu ver um rosto conhecido. O cabelo dela esvoaçou ao vento do estacionamento, batido pelas súbitas lufadas da tempestade que se aproximava. Ela olhava para os lados e toda a sua atitude denunciava que talvez estivesse à espera de alguém ou de que procurava um carro conhecido, talvez um porto seguro. Ela olhou de um lado e por um momento ele achou que ela o tinha visto apesar de ser impossível porque ele estava escondido atrás de um vidro totalmente escuro. Ela novamente varreu o estacionamento e súbito, estacou. Foi em direção de um carro grande, uma Van, uma perua que as suas posses jamais dariam conta. Ela subiu, toda lânguida e sem o mínimo pudor, deu um beijo no motorista do carro que lentamente a abraçou e deu a ré, rumo ao desconhecido.
– Ela tem um quê de misterioso. Sempre foi assim!
– Mistério demais para mim tem outro nome!
– Você sempre vê maldade nas coisas. Ela tem sua vida.
– Está bem, eu sei, mas ela....
Ela o estava traindo. Bom, seu coração em frangalhos o deixou espantado, mas antes de fazer qualquer coisa fumou mais um cigarro e desta vez furiosamente, como se fosse o último de um condenado à morte. Dói isto, justo ele!
– Porra, justo eu!
Era verdade. Ele saiu de mansinho e se dirigiu à sua casa. Entrou no pequeno apartamento que eles dividiam a custo, pois ambos se esforçavam , mas tinham poucas posses. Ele achou que só amor bastaria, dias e dias intensos que já não havia mais; ambos lutavam em seus trabalhos. Do que valera tudo isto? Ele foi ao seu quarto, pegou a grande mala e a encheu de suas coisas; pegou meias, camisetas, ternos e gravatas. Pegou os livros que mais amava e pôs na outra sacola. Separou tudo meticulosamente e embalou. Precisou de ajuda do porteiro do prédio, mas tirou tudo o que tinha de dentro do apartamento.
– Vai viajar, seu Tenório?
– Vamos dizer que sim.
O bom moço olhou nos seus olhos e fazendo como se entendesse e soubesse de mais algo, abaixou a cabeça tristemente e se despediu. Ele, seu carro abarrotado de suas coisas, a rua e uma última mirada no que fora sua morada por cinco anos. Cinco anos misteriosos, cinco longos períodos de tempo, cinco séculos de espera e tesão, cinco milênios de felicidade, cinco segundos de discussões, cinco dias por semana. Ele achava que isto a detinha, que isto a prendia. Não. Ela queria mais, queria as altas esferas, queria dar vazão à sua fera. Ela queria mais. Não dele.
Olhou ao espelho e viu que seus olhos estavam vermelhos como o do moço que passara por seu carro horas atrás no mercado. Só que desta vez, era ele quem chorava. Fechou a porta com o cuidado de sempre, sabe como é, melhor economizar até fechadura.
Quando ela chegou de noite, esperando sentir o cheiro daquele com quem se habituara, surpreendeu-se com a escuridão repentina que o apartamento lhe apresentou. Ela percebeu que, se alguma coisa ainda poderia ser feita, não seria agora.
Nem nunca mais. |