O RELÓGIO DAS ÁGUAS
FLAVIO GIMENEZ
Bom moço - O Relógio das Águas - Flavio Gimenez - fls. 26 - Blocos Online

A boa ação

Encontrei a moça aos prantos, sem esconder sua mágoa de ninguém, do tipo que chora sem vergonha nenhuma. Era um lamento ao mesmo tempo dolorido e vistoso.

– Ele me paga!

– Quem é ele?

Voltou a chorar e que remédio? Eu era o único que poderia ouvi-la. Engraçado como, nestas horas, todos se afastam, como se o choro transmitisse uma doença. Sabe quando um epiléptico cai no chão e todos têm medo de tocar nele porque acham que a saliva do doente transmite a doença ...

– Ele é ele, ora. É um panaca. Estragou minha vida, mas ele me paga!

Vistosa a menina, dona de um belo par de coxas realçadas por uma saia justa, do tipo que sai do lugar a hora que ela queira ou que queiram. Não podia deixar de estender minhas mãos, um abraço amigo nestas horas faz a diferença. O que me remete diretamente aos meus amigos queridos que me chamam de grande santo, reputação ilibada que tenho. Podem comprovar!

– Mas que mal afinal o panaca fez a você?

Ela olha incrédula para mim, erguendo a cabeça num movimento gracioso que combina com seu fino pescoço e um par de olhos crava-se em minha bondosa face, interessado que estou pela beldade que se esvai em lágrimas que escorrem pelo seu rosto.

– Não interessa!

– Opa. Estava passando e vi você chorando quis ajudar, só por isso perguntei.

– Você tem um bom coração. Está em sua cara.

Não sei se ela falava com sinceridade mesmo ou se já antevia meu bom espírito samaritano, o fato é que foi se acalmando e respirando fundo enquanto eu lhe oferecia lenços de papel para que assoasse o nariz, charmoso nariz de ponta fina, encimado por um olhar que devia ser matador, quando ela estivesse melhor. Claro está que o garçom do bar já preparava uma boa dose ao meu sinal, velho conhecedor de meus hábitos de frequentador antigo daquelas paragens.

– Vamos para um lugar mais agradável?...

...E a levei à mesa do barzinho, onde agora conversávamos. Lá estavam duas doses do melhor uísque, grande amigo do homem nessas e noutras horas.

– Quer um cigarro?

– Obrigada.

Tomou o cigarro entre os dedos com maestria de fumante inveterada. Rodeou a boca do copo com os dedos indicador e médio e desatou a falar daquele que lhe fizera mal.

– Ele me paga!

– O que realmente foi o que ele fez a você?

– Deixou-me na mão. Fiz o que fiz por amor, sabe , e ele dizendo que ia ficar comigo, só comigo e nada mais. Bela ilusão.

Por falar em mão, a minha já estava em seu ombro direito, enquanto a outra pegava o copo e levava à boca uma dose da bebida envelhecida em tonéis de carvalho.

– ... Aí ele me deu o anel. Esse aqui: olhe! Bem esse aqui. Prometeu mundos e fundos, disse que ia ficar comigo, a outra que se danasse ...

– Bem se vê que ele tinha muito bom gosto.

Um certo olhar de fúria inibiu mais um comentário sarcástico, eu tenho jogo de cintura nestas horas mais agudas.

– Digo, um anel assim não se dá para qualquer pessoa. Vê-se que ele gostava mesmo de você, apesar de tudo.

– Se gostasse, teria ficado comigo e não me deixado aqui esperando por horas , para no fim , sumir do mapa sem dó nem piedade. E eu, fiz o que fiz por amor, movida a paixão. Ele me enganou.

– Tem homem que é assim mesmo. Diz um monte de coisas, promete o mundo e vai ver, é tudo mentira. Diz que é uma coisa, que trabalha e tal, é vagabundo de nem ter lugar onde morar.

– Nossa, ele não era tudo isso não. Mas cafajeste isso ele era sim. Tanto era que depois do anel, nem um nada mais ele me deu! Nada mais!

Voltou a chorar e fui obrigado a secar uma lágrima que escorria pelo seu queixo, num gesto que a enterneceu. Afinal, ninguém é de ferro. Ela me olhou nos olhos e empertigou o corpo, sinal de que a terapia de choque já funcionava. Sentia que era estudado e expunha o mais que podia meu rosto de homem vivido e ela com seus olhos perscrutava meus sentimentos que àquela hora teimavam em manter-se escondidos. Sou lá homem de me entregar assim tão facilmente ?

– Bem, e você já está se sentindo melhor?

– Melhor; aliás, foi bom desabafar com você aqui.

O sinal de cabeça era a dica ao garçom que sabia de minha fama e trazia mais que breve outra dose do cachorro engarrafado. O olhar dela ora se dissolvia em recordações, ora se perdia em uma bruma crescente que a bebida traz de presente às almas que se tornam suas presas. Não que a quisesse bêbada, digamos assim, algo mais relaxada, apenas. Uma mão das muitas que eu tinha já apalpava sua cintura e ela certamente não estava indiferente, tanto que me olhava cada vez mais interessada enquanto eu lhe contava as vantagens do acontecido a ela, quanto sofrimento havia sido evitado, quantas falsas coisas ela poderia ter sofrido, que descaminhos a poderiam ter levado a cantos obscuros sem que ela tivesse controle; o mundo é cheio de safos e de mal-intencionados.

– Você tem razão. Sabe? Você tem razão.

O jeito como pegou o cigarro traiu sua condição. P recisou de minha ajuda para fumar enquanto sorvia mais uma dose da santa fermentação. O garçom olhou do alto de sua malícia e fez que sim com a cabeça; era o momento de salvá-la de si mesma, era o momento de escoltá-la a um canto mais seguro, como um cavaleiro da távola redonda levaria suas mulheres às torres dos castelos.

– Podemos ir a um lugar mais tranquilo ainda, se você quiser.

O suave aquiescer da garota fez com que levantássemos, ela um tanto tonta, mas firmemente amparada por mim. O garçom, de longe, fez gesto de anotar na carteirinha mais uma para a coleção. Não liguei porque garçons, ainda mais àquela hora da noite, não entendem nada de alma humana. Eu estava apenas guiando-a para que, pelo menos dessa vez, a moça desse o passo certo em sua vida. Um gesto nobre, digno do bom samaritano que sou.


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