Filósofo é aquele cara que tem mania
de criar conceitos. Gilles Deleuze e Félix Guattari, no livro O
que é a filosofia? mostram que filósofo é o amigo
do conceito, ou melhor, ele o próprio filósofo é o
conceito em potência. Li pouco de história da filosofia. Lia
os filósofos que iam aparecendo em minha vida, acidentalmente. Outros,
de meu interesse, corria atrás até encontrar. Embora entenda
ser importante a visão orgânica da filosofia, fixei-me com
obsessão na teoria do conhecimento, aliás, utilíssima
pra quem faz arte e literatura. O estalo, o lux, taí, na relação
cognitiva: sujeito x objeto x prisma de análise, os condicionamentos
do sujeito cognoscente, etc. Após tanto debater-me no processo do
conhecimento, acabei pai de filosofia. Modestíssima a minha, só
para o gasto, construída no quintal da casa, a protonathural, que
carrego comigo sempre para onde vou e que apesar de séria, é
motivo de riso para os outros. Li e confundi vários filósofos
ao mesmo tempo. Pegava a mônada no ar, e póft, a abatia à
tiro, como um verdadeiro tiro ao pombo, ou tiro ao prato. Uma coisa sobre
filosofia aprendi e isso digo de boca cheia: tem tudo a ver com samba e
poesia. Não se aprende estudando sua história. Não
se aprende nos templos afamados do saber. Não se aprende nos grandes
museus e cemitérios de livros. Filósofo, é de nascer
pronto. Ou mais certeiro: filósofo já nasce filósofo.
Tem tino. Alto poder de abstração. Aquele olhar grave que
estraga qualquer festa, como expressou Erasmo de Roterdã, no seu
O elogio da loucura. Filósofo é deslocado. Distraidão.
Só pega no tranco. Na fase oral, tem a estranha mania de morder
os bicos dos seios da mãe e cuspir fora a chupeta de borracha.
Além, muito além de criar conceitos, ou sê-los, os
conceitos em potência, filósofo é aquele cara
que desde menino, não sabe brincar com as outras crianças.
Tudo que faz dá errado. Não sabe ganhar dinheiro, namorar,
atleticar. Filósofo, é acima de tudo indolente e reparador.
Vejam que em reparador está praticamente a potência máxima
do protofilósofo. Reparar é observar, criticando silenciosamente.
Etc. Filósofo já sai pronto de forma. A ninguém se
deu ou se dará o poder de fabricar filósofos. Convive o triste,
com o são desequilíbrio construtivo, oscilando entre imanência
e transcendência. Não adianta subir o longo calvário
do conhecer histórico e canônico da velha filosofia, especialmente
a ocidental, que é criação humana, racional e cerebrina,
para tornar-se um dia filósofo, se não se detém o
dom inato, de profunda observação dos fenômenos. Criar
conceitos é apenas uma das faculdades com as quais os filósofos
se armam. Além dessa muitas outras espocam, como estrelas, no céu
da vida daquele pobre coitado que nasce com o mal grave da Triphistophilosophia.
Primeiro: filósofo que é filósofo deve saber situar-se
no tempo e no espaço. Impor-se pelo pensamento. Pensamento que deve
trazer no mínimo, algo do seu próprio pensar. Pensar
que não pode ser mera revista do que lera de outros filósofos
ou veio a aprender em escola. Para tanto, filósofo deve trazer sempre
sob as vestes, o opúsculo extraordinário de sua lavra. Um
opúsculo qualquer de no mínimo vinte ou trinta laudas de
um só-pensar-particular, legítimo, autêntico,
nem que seja no próprio equívoco desse seu detido pensar.
Equívoco que poucos terão coragem de um dia em vida acusar
ao nosso amigo filósofo. Lembrando que muitas grandes filosofias
viveram apenas de uns poucos conceitos, não é preciso escrever
muito para se conceber uma filosofia original. A obra realmente é
de fundamental importância na vida do filósofo que se habilita.
É de se compor o filósofo convicto, o seu pequeno livro,
aberto aos espíritos, o livro que revele o pensar singularíssimo,
de ser e estar no mundo entre as coisas. Tudo isso, que é quase-nada,
fazer, sob pena de passar em branco, como uma traça tonta, a vagar,
nas páginas do processo filosófico, sobre as sentenças
(conceitos) dos outros. Afluir, entre as antinomias: identidade e
contradição, ser x não-ser, causa e efeito, sujeito
x objeto, transcendência e imanência, presença x não-presença,
essência e aparência, etc. Segundo: filósofo é
de trazer claro no espírito sua visão do mundo e da nathureza
como um todo, eis que como sujeito é objeto no social e como objeto
é também sujeito que conhece e como pensador, é capaz
de interferir na natura das relações, fixando em ato seu
pensar das coisas, que não pode ficar meramente no plano do pensamento
pelo pensamento, mas traduzir-se em ação, interferência
transformadora. Pensar é revolucionar. O pensamento sim, aplicado
em ato, um fazer sobre todas as coisas, subverte o real. Filósofo
é de ter também finalidade. A mínima possível,
por exemplo: mudar o mundo. Filósofo que é filósofo
sabe disso. Mudar o mundo é fácil e deve ser feito no todo
dia, no almoço com a família. No sofá, quando todos
dormem, depois da meia-noite. Nesse horário é melhor, porque
pessoas, ah pessoas, essas sempre vão querer evitá-lo nas
suas longas preleções. Outra coisa: nunca participar de ideologias
coletivas. Ter falsa consciência da realidade, em deliberando sozinho
sobre o vaso sanitário. Filósofo é de estar na rua,
informadão. Transar com a semiótica. Antropologia. Arte.
Poesia. Estar com canais de comunicação abertos. Holístico.
Filósofo é de ser fogo. Filósofo é de ser gêlo.
Tudo deve saber. Com tudo deve interagir. E com nada ao mesmo tempo, retornando
à origem, ao instinto básico de contemplação
das estrelas. O ímpeto selvagem é que deve levar o filósofo
em sua caminhada rumo a alguma coisa que pode ser a revelação
da cósmica razão do existir. O conhecimento é um reflexo
da nathureza no ser. A voz de Hegel, soando baixinho entre as árvores.
A voz sisuda, autoritária, que ante todo o metafisismo, alerta sobre
o não afastamento demasiado do filósofo da nathureza, onde
encontram-se os objetos mais importantes da filosofia. Não adianta
procurar lá longe o que está aqui tão perto de ti
filósofo. O problema é você, a nathureza (objetos)
e o conhecimento que se tira dali, das coisas mortas, das coisas vivas,
das coisas que causam, das coisas que implicam, das coisas que serenam,
do tempo, da história e do vento. Filósofo é mesmo
conceituador. Mania de verbo ser, o é pra tudo quanto é coisa.
Poesia é produto fenomênico do pensamento. Poesia é...
O tempo é cíclico. A história é repetitiva.
Tudo é e deve ser para o filósofo impetuoso, aquele
que arrisca tudo no saber, como os suicidas no morrer. Sofro delírios
de silogismos no de vezenquando, o que revela em mim índole conceituadora,
coisa de filósofo, além do que recebo estrelas no sótão
depois da meia-noite, não namoro, perco botões das camisas
à toa, metafisico sob as tempestades, peripatético, com conta
estourada no banco. De quebra, ainda sou fanático por linguagem.
Outra afecção má do espírito, já convulso
de filosofia. Imaginar na hora do lanche, a composição
de obras futuras, almejadas, tais como: A razão absolutória
dos males do espírito ou Da atração da inteligência
pelo mórbido. Boa parte da vida entregue às conjeturas, o
quem sou? de onde venho? para onde vou? porque? pra quem? como? Sempre
um fio invisível enredando teu corpo, teu espírito de filósofo
na hermética teia da aranha absoluta. Enredando. Desafiando.
Que é pra se perquirir. Que é pra se engendrar pelo cognocer
elevado. Que é pra repercutir verdades transfinitas. Que é
pra subverter o real e o certo. Que é pra... Arroz, feijão
e filosofia, é de se pôr na mesa todo dia. Filosofia a louca
preciosa. A insubordinada que atenta contra as profissões
contemporâneas, eis que convida ao ócio criativo e resgata
a reflexão questionadora. Filosofia a desordeira. A santa. A obstinada.
A traiçoeira, que mata de mentirinha a vida, antes da vida nascer.
A que das perguntas faz respostas e das respostas, faz propriamente filosofia.
Antes que me caia uma tartaruga na cabeça, derrubada por alguma águia distraída. Antes que me caia um balde de tinta de cima da escada de frente à loja. Antes de tudo, que o filósofo que é filósofo se perca e se reencontre na vida e no pensamento, a fim de haurir do nada que é tudo uma razão feliz, de muito amor e elocubração para a vida presente e futura.