LISPECTOR: A VIRGÍNIA WOOLF DOS TRÓPICOS
 
A autora que nasceu numa aldeia ucraniana que não existe no mapa e um dia foi retratada por De Chirico, é lembrada por sua prosa bela e lúcida


O Marrocos é um dos países mais belos da terra. No tempo em que passei ali fiz amigos que, desde o primeiro momento, soube para sempre. A janela do meu quarto no simplório hotel Jardin Publique, em Fez, ponto de encontro de estudantes ou jovens com pouco dinheiro de todo o mundo, se abria para a porta de Bab Bou Jeloud, na entrada da medina. Tudo, desde os aromas do mercado popular até o movimento ruidoso da gente morena caminhando pela grande praça, misturando a elegância e a miséria, convidava ao movimento, a busca de rostos e desejos. Porém, passei toda uma tarde no meu quarto, em um pufe de pele de carneiro, de costas para os filhos de Moulay Idriss, lendo. A leitura é um vício poderoso, porém há ocasiões, e aquela tinha que ser uma, que o chamado da vida é insubstituível, e assim deixamos o livro e nos deixamos levar. Às vezes, e naquele dia de outono foi assim, o livro é o vitorioso. Lia Perto do Coração Selvagem (1944), de Clarice Lispector, e fui absolutamente incapaz de separar-me dele até dar conta de todas as suas páginas, mesmo tratando-se de uma releitura (li-o pela primeira vez no ginásio, aos treze anos, e dez anos depois, com outros olhos). Um livro visivelmente escrito com angústia. Sempre me ocorre o mesmo com Lispector. Com A Maça no Escuro (1961), uma das grandes novelas da narrativa literária brasileira; com Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969) e, pouco depois de meu regresso do Marrocos com a leitura em espanhol de La Hora de la Estrella (1977), este último romance publicado em vida por Clarice, com uma das personagens-protagonistas míticas do nosso panorama literário - Macabéia -, tão especial como Capitu, Diadorim, Gabriela ou Ana Terra. Muitos poucos escritores brasileiros me proporcionaram um prazer comparável ao que me produziu Perto do Coração Selvagem, primeiro romance de Lispector (1925, Tchetchelnik, Ucrânia - 1977, Rio de Janeiro), dividido em duas partes: na primeira, a infância e a vida adulta de Joana; na segunda, o desenvolvimento de um triângulo amoroso falido, terminando com um monólogo perturbador da protagonista, onde lê-se: "nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo". Na mesma estante com Clarice colocaria Lúcio Cardoso, Autran Dourado, Guimarães Rosa, Adonias Filho, o primeiro Jorge Amado, Mário de Andrade, Rachel de Queiróz e Graciliano Ramos. Por motivos diferentes, As Horas Nuas (1991) de Lygia Fagundes Telles, Bufo & Spallanzani (1986) de Rubem Fonseca.
Um prazer diretamente ligado a magia da palavra, ao assombro permanente ante a força de situações e diálogos que, podendo resultar sábios em obras de outros autores, neles levam a esperar mais, embora por outro lado, seja inacreditável a possibilidade de "algo mais". Este é o tom de Clarice, o nível de intensidade, ao longo de toda sua obra. Uma escritora plena, traduzida para o inglês, o francês, o alemão e o espanhol, entre outros idiomas. Em A Hora da Estrela, vê-se o narrador-autor presente em todo o texto, moldando a personagem à sua imagem e solidão, acabando por situá-la ( a autora) como uma espécie de Virgínia Woolf dos trópicos, não só porque domina a psicologia e o monólogo interior como também suas histórias, como as da escritora de Bloomsbury, não têm um enredo definido, um começo, meio e fim, segundo os cânones narrativos convencionais. E a aparente banalidade da trama de A Hora da Estrela esconde um intimismo que alcança o hermético, obrigando o leitor a debater-se entre uma estranha sedução e o mero desconcerto. "Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades de mar", escreveu Clarice em Um Sopro de Vida (1978), onde novamente põe o dedo na chaga literária da criação. Sua imaginação é extravagante a força de ser autêntica e sua obra insubstituível. Tenho para mim que Clarice Lispector não é o bastante valorizada no Brasil, embora seja verbalmente unânime entre escritores e críticos.
Possivelmente, é mais falada que lida. Quiçá, em parte, devido a narrativa que busca romper com a barreira da palavra, com personagens geralmente tensas e inadaptadas a um mundo hipócrita e cansativo. Mesmo assim o seu nome cresce com o passar dos anos: é um dos poucos escritores brasileiros que recebe resenhas elogiosas em França, Espanha e Portugal. Eu estou sempre falando sobre Clarice a estrangeiros interessados em sua obra. Para isso, levo comigo alguns livros fundamentais de sua criação. Eu guardo meus exemplares da obra de Clarice desde a adolescência. Gosto de conservar certos livros como se estivessem em extinção, como em Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. Entretanto, mesmo única, Clarice Lispector necessita urgentemente de ser "encarnada" em novos escritores. Afinal, nunca mais houve no Brasil alguém com sua força, profundidade, extravagância e fragilidade. E termino com uma frase sua: "Parece que me mitificaram. Eu não quero ser particular". Impossível, Clarice.

Antonio Júnior
De Barcelona


 

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