Quando o progresso chegava em busca da amada: notas sobre o filme Olhos negros do diretor russo Nikita Mikhalkov.

            Um filme com estrelas (do cintilar de Silvana Mangano e do brilho de Marcelo Mastroiani) nas brumas russas. Uma trilha sonora belíssima. Só a música da película aqui apreciada já seria um ótimo motivo para assisti-lo. Uma obra inicialmente tramada sobre o inusitado (confidências de um garçon a um participante de um cruzeiro entre a Grécia e a Itália), passando por momentos cômicos (hilariantes, quase circenses), por tiradas precisamente críticas, anárquicas que estabelecem uma ponte de suspiros entre o norte e o sul da Europa. Nikita Mikhalkov romaniza felliniamente a Rússia. Proustianiza o edipianismo do personagem assumido por Mastroiani (Romano). Uma trama cirandesca de vai e vens de apaixonados entre a Rússia e a Itália (e vice-versa). Um filme no qual N. Mikhalkov consegue fazer com que os cenários e a trilha sonora de Olhos negros digam alegórica e esteticamente o máximo sobre o seu enredo. Uma trama fílmica que é circular, que nos remete à questão do eterno retorno, à possível antevisão do aparentemente impossível, aos soluços de um sono feliz ao lado de um combativo ambientalista que ainda sonhe com um paraíso (para ele ainda não totalmente perdido). Uma carroça nas pradarias brumosas russas expandindo os horizontes romanos da farra latina. O já manjado do pé de chinelo que teve a sorte de se casar com uma ricaça (que mais tarde lhe humilha com esta acusação), um casamento que o cansou, que o exauriu, apesar do seu luxuoso e palaciano cotidiano. Alguém que ri da transparência decorada com ramos floridos aplicados sobre folhas ou lâminas de vidro transparente (símbolo e produto alegórico do progresso sonhado pela elite de uma cidade do interior da Rússia -?). O amor vivido em seu auge em meio às alvas penugens esvoaçantes de um galinheiro no fundo do quintal do palacete de um burgomestre da pátria de Tchaikovski. Um filme assistido quatro vezes – ou mais – pelo estudioso de trilhas musicais na história do Cinema Márcio Alvarenga, lá de Uberlândia, em pleno sertão da farinha podre. Uma película que exibe a beleza art-nouveau dos jardins da aristocrática Itália de 1903. Um filme com imensos e imperiais cortinados romanos esvoaçando entre mesas ocupados por granfinos, risadas, palhaçadas e outras graças e molecagens de Romano, filho do dono de um modesto restaurante que teve a sorte e a falta de sorte de se casar com uma ricaça italiana... Obra cinematográfica que sintoniza e aproxima (com lucidez e ceticismo) passado e presente, eslavos e latinos, horizontes do setentrião europeu com a Mediterraneidade itálica.
            Em tempos de globalização este filme italianiza a Rússia e os olhos negros de uma amante russa e as paisagens douradamente brumosas e crepusculares da Rússia dos Césares tardios conquistam e voltam a ninar a alma de um italiano no aconchego bucólico de uma carroça, ao lado de um utópico e combativo ecologista que insiste na defesa de um paraíso quase perdido... Um filme de arte. Desconhecido e desvalorizado, também não divulgado. Não nos esqueçamos que estamos em plena era da mediocridade (em todos os planos e setores), em meio a uma profunda época de esquecimentos, de desinformação e do insólito caos insolúvel da irreversibilidade das mudanças por nós ainda nem bem claras nem conhecidas. A um só tempo uma película cômica e cética, mas não cínica. Pós – felliniana talvez...

José Luiz Dutra de Toledo


 

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