«Amo-te, queria ter-te agora sobre o meu
peito para saber que existo. Queria que, nua e
cingindo-me entre as tuas pernas, me beijasses o
peito. Depois, que me masturbasses. E assim, somente
assim, existo.»
Carta de Paul Eluard para Gala
Um dia disseram-me: "as
cartas envelheceram, já não são desta
época". Não pactuo com os corações crédulos
deste mugido de finitude, a comunicação epistolar, considerada
bastante antiquada, renasceu com a internet e o correio eletrônico.
Contudo, o e-mail não passa de um bilhete virtual. Os textos, as
palavras, as confissões vermelho-púrpura são mais
dinâmicas em cartas tradicionais. Sob o meu hálito de cigarro
e hortelã, escrevo cartas poéticas: "O que era antes de ti
a beleza para mim?". E às vezes chegam cartas. Tratam-se de migalhas
de longe, convertidas em sentimentos vivos. O máximo do romantismo
seria colocá-las numa caixa elegante, atá-las com fita de
seda e perfumá-las com ramos de alfazema, próprio para as
desesperadas cartas de Oscar Wilde para Lord Alfred Douglas: "Não
posso viver sem ti. És tão desejável, tão maravilhoso!
Os teus lábios, rubros como pétalas de rosa, foram feitos
para a música e o canto, como para os beijos.". Cartas piegas que
empurraram o escritor irlandês para a prisão, a miséria
e a morte. Uma carta é esse objeto inanimado que pouco a pouco acaba
palpitando, como um tigre devorando o peito. Na paz das casas sem televisão,
é fácil ouvir vozes saindo de envelopes convidando-nos a
ouvi-las. Muitos resistem com truques, tal Ulisses amarrado ao mastro de
seu barco para não ser encantado pela melodia das irresistíveis
sereias. Um deles é deixá-las cuidadosamente num bolso de
umas calças sujas, para que sejam trituradas pela lavagem, ou ainda,
abandoná-las próximas de uma janela para que o vento as leve.
São formas de neutralizá-las. Uma carta íntima, se
deixada em liberdade, é um animal selvagem agarrado ao coração
de quem a enviou, de quem a recebeu. Para perceber a idéia, é
só acompanhar a desbocada correspondência entre James Joyce
e sua mulher Nora Barnacle - nas cartas do gênio: ora virgem, ora
puta. As cartas libertinas de Nora contribuíram para o célebre
monólogo de Molly Bloom no final de "Ulisses". Recebi recentemente
uma mensagem de um leitor amigo de Londres. Um poeta que vive por lá
há anos. Leu um ensaio que escrevi sobre o escritor norte-americano
Paul Bowles. Desde então, uma vez por outra, trocamos idéias
sobre literatura; e desta vez dizendo que os meus textos na primeira pessoa
são quase cartas. Eu gosto de corresponder-me com desconhecidos,
penso nos seus perfumes, imagino os seus rabos expostos. Serão durinhos
e peludos? Macios e perfeitos como os dos irmãos negros? Falo de
literatura pensando no prazer em variados sentidos, como Hilda Hilst, e
talvez seja um problema, porque estou longe da idade dela. Os correspondentes,
na sua maioria, querem a serenidade de novelas românticas, é
como se, ao escreverem, obrigassem-nos a travestir de Peri ou Iracema.
Quando se é realista, intimista ou terrível, confundem-se,
passam dias sem escrever, possivelmente crendo que o silêncio causa
sofrimento ao próximo. Não sabem que os escritores escrevem
para não morrer em vida e não contam com respostas, como
tábuas de salvação. Depois dos dias mudos, chega a
sentença, naturalmente disfarçada, pensada, dando lições
existenciais, filosóficas, literárias ou até mesmo
gramaticais, sempre educadamente. Sei que o válido é o luxo
da escrita. Não escrevo para encantar ninguém, escrevo para
fixar impressões já que a minha memória é curta;
e só escrevo o que sou e o que sei. Se não tenho milhares
de leitores, pouco importa, afinal escrevo em primeiro lugar para mim.
E gosto imensamente de cartas. Alguns insensatos usam-nas como alimento
para lágrimas e rancores. Outros violam o direito privado da correspondência.
De onde vem o gozo dos "espias" dos sentimentos alheios? Que sabem esses
leitores da castidade ou perversidade de cada linha? As cartas fosforescentes
e trágicas entre F. Scott e Zelda Fitzgerald são impudicamente
públicas, assim como as de Anais Nin para os seus amantes, de Dora
Carrington para Lytton Strachey, de Nelson Agren para Simone de Beauvoir
(a interessante autora de "A Cerimônia do Adeus" não saiu
lá muito favorecida quando a sua correspondência com Sartre
foi publicada, revelando uma personalidade tirana e perversa). Para os
interessados no passado, cartas em vez de serem o clarão dos fogos
de artifício, tornam-se cinzas de uma ausência lamentosa.
A carta, para existir, implica vivência. Ela só existe quando
nasce de uma intensidade única. Dentro de uma caixa de madeira de
charutos cubanos, guardo cartas originais dos anos 50, 60 e 70 de Drummond,
Vinicius, Lygia Fagundes Telles, Caio Fernando Abreu, e uma vez ou outra,
vejo a caligrafia deles como uma pintura minimalista. As cartas são
uma vocação irresistível para o abismo do amor. Uma
carta nasce do espanto. O correspondente digno de seu ofício não
teme a solidão da falta de respostas. Não me interessam de
todo as populares publicações de correspondências,
como a recente entre João Cabral, Bandeira e Drummond, mesmo amando
os dois primeiros. Os remetentes de epistolados publicados devem uivar
na tumba quando estranhos se atrevem a ler as suas frases comovidas. O
que pensaria Kafka com a revelação escrita da sua amada Milena
a uma confidente: "Todo este mundo do sexo, para ele, é e continua
a ser misterioso. Um segredo místico, algo com que não sabe
lidar e que tende a sobrestimar com uma ingenuidade comovedoramente
pura.". As cartas de Kafka, são perfeitas, intensas no que dizem
e no que calam. "Cartas ao Pai" é uma obra-prima, assim como o é
o notável "Alexis", a primeira novela de Yourcenar, onde um homem
confessa a sua homossexualidade à esposa através de uma carta
perturbadora. Às vezes chegam cartas — relíquias do desamor,
troféus da discórdia, como a carta fatal do filme de Mankiewicz,
"Quem é o infiel?". As cartas puras são a revolta do espírito
criador, dos ausentes de escrúpulos, da inconsciente mediocridade.
Aos profanadores póstumos, aos arqueólogos da ira que sintam
compaixão pelas cartas que não são suas; que descubram
a beleza da intimidade de receber uma carta e, principalmente, escrevê-la.
Eu correspondo-me com muita gente, alguns nunca vi o rosto, como o poeta
Ulisses Góes, de Itabuna — as suas cartas são sensíveis,
enriquecedoras, nada sujeitas a costumes morais e sociais —, e eu, eu comovo-me
particularmente com as cartas da Emily Dickinson de Porto Alegre, Célia
Maria Maciel. Eu confesso publicamente minhas culpas, correspondo-me com
poetas, artistas vários, loucos, ex-amantes, solitários,
familiares, deprimidos, amigos antigos e outros recentes. Mas desejaria
numa tempestade de palavras todas as cartas que um dia foram lidas e guardadas
na memória, único papel digno em que merecem permanecer.
Que queimem num incêndio de virtudes! Ali onde a vida humana costuma
exalar seus cálidos e honestos propósitos. Amém.
Antonio Júnior
de Lisboa
Para Genny Xavier e Maurício Pinheiro, poetas sensíveis que temem cartas.