Eu sei: sei que o leitor e a leitora já ouviu "A paixão
segundo São Mateus" de Bach. Não sei se na mesma gravação
que ouço agora, Deutsche Grammophon 419789-2, conduzida por Karajan,
com a Filarmônica de Berlin e Gundula Janowitz etc., coro da
Ópera de Berlin, em 1972. Não sei. Que dizer? A massa sonora
desaba a dramaticidade de uma catástrofe. Que mais? Karajan explorou
os "Ah!" - alongando "aa", estupefatos, de puro horror, perdurando-os até
o limite do insuportável da dor. O ouvinte pode gritar: "Pare!"
E o duplo coro: "Venha, irmãs, compartilhem com as minhas lágrimas"
- na expressão funda em que o coração se despedaça.
"Veja-O". "Veja-O" - se ouve a Mãe dizer, a apontar o filho, petrificada,
horrorizada, vendo o amado filho, ali, no alto da sua compaixão,
a caminho do sacrifício, a caminho do Gólgota, a caminho
do Lugar da Caveira. E as flautas choram, os fagotes e violinos gemem,
o órgão acorda, o coro, gigantesco, se engasga porque o mundo
inteiro está em ruínas, o Universo estremece estarrecido
- o que foi aquilo? Que é aquilo que vemos? Oh, que horror!
São ondas largas, são ondas largas. "Veja-O, o torturado".
(Mas riam dele, e despojavam-no de suas vestes, cuspiam nele e, tomando
o caniço com que se apoiava, davam com ele na cabeça, obrigando-o
a beber vinho com fel). Mas Ela, a Nossa Própria Mãe!,
nos exclama: "Veja a sua doçura!" Veja com que doçura ele
vai a caminho da dor. Não há, neste tema, talvez o maior
de todos os temas - do sacrifício, da tortura, da loucura, da violência,
da nossa crueldade - maior realismo do que esse: "Estais vendo? Estais
todos vendo o que vejo? [pergunta a Mãe]. É ele! Veja a sua
doçura a caminho do calvário!" E a massa do diáfano
coro infantil, saído não se sabe de onde, talvez das profundezas
das nossas próprias mentes, as crianças celestes, as
mais puras crianças celestes, uma surpresa de Bach, que entra
com vozes vindas de um céu distante onde pequeninos anjos horrorizados
e não acreditando naquilo a que estavam assistindo, com o que estávamos
todos assistindo, o mais santo dos homens levado ao sacrifício brutal...
Bach usou e abusou de sua engenhoca, da sua capacidade de, num malabarismo
barroco, nos enredar, nos torcer como serpente estranguladora de suas
malucas idéias musicais, hipnotizando, sufocando até às
lágrimas. Na realidade, esta é música perigosa, faz
muito mal, depois de ouvi-la nos sentimos mal, pode até matar-nos.
São certas voltas e fugas das vozes mais puramente estarrecidas
daquelas crianças celestes do coro infantil que gritam nos nossos
ouvidos, que gritam para nós, dentro de nós, para que ouçamos
nós, para que nunca nos esqueçamos nós: "Ó
Deus, como ele está sereno a caminho da cruz" - "Como está
paciente!" "Ainda que cruelmente torturado..." ... de seus olhos saem a
sua grande e máxima compaixão...". A música passa
por sobre nossa sensibilidade como um tanque de guerra. E Bach trabalha
com a gigantesca massa de sonoridades impressionantes, quando o texto da
antiga liturgia luterana nos diz (não sem ironia): Tende piedade
de nós, ó Jesus! Nós vos imploramos, ó Jesus,
tende piedade de nós! - Isso dito na hora mesma em que ele está
a caminho da morte! E todo coberto de sangue! Tende piedade de nós,
vós que caminhais para a morte, enquanto carregais sobre os ombros
o instrumento da tortura! Vós que estais sendo levado à mais
terrível dor, ao supremo de todos os nossos erros, tende piedade
de nós! De nós que vos condenamos à Morte! Tende piedade
de nós!
Rogel Samuel