É bem sabido que a arte brega, cafona, vazia de conteúdo, também prolifera nos países ditos civilizados. Para confirmar basta ouvir Céline Dion, a popular chorona do Canadá; ver o mega sucesso hollywoodiano Uma Mente Brilhante ou ler o best-seller inglês O Diário de Bridget Jones, de Helen Fielding. São produtos babões dos interesses da indústria cultural. Na verdade, o mau gosto faz parte da história da humanidade, apesar de que nunca esteve tão próximo de tornar-se o próprio sentido dela. Para o australiano Robert Hughes, o crítico de arte mais influente do planeta, as artes plásticas da última metade do século XX não lançou nenhum movimento inovador ou qualquer aprendiz de gênio e os seus artistas, com raríssimas exceções, serão soterrados pelo tempo. É uma afirmativa pouco benévola, mas Francis Bacon, Jackson Pollock, Paul Klee, Matisse, Marcel Duchamp, Lucien Freud ou Alberto Giacometti são de época anterior a incluída nesta impiedosa análise. No entanto, para não repetirem a acusação que só preocupo-me com a criação que vem do estrangeiro, dedico este ensaio aos desvarios da banalidade do show business tupiniquim. Sim, tudo atualmente por aqui é show business, mesmo faltando o charme insano de Carmen Miranda cantando a Aquarela do Brasil ou do teatro rebolado de Virgínia Lane.“Elogiar o que está bem é uma prova de muito mais finura de espírito do que depreciá-lo”.
(Arcebispo John Tillotson, Máximas e Discursos Morais e Religiosos, 1719)
Pra começar, confesso que não tenho televisão, portanto confundo todas essas louras oxigenadas, afrodisíacas e bombadas que cantam, dançam, apresentam programas, namoram jogadores de futebol, fazem novelas. Chamo-as, uma por uma, de Carla Perez. Parecem-me travestis fingindo feminilidade, prostituindo-se numa imensa avenida mal-iluminada que atravessa os nossos lares. Gostosa de verdade era a Odete Lara. Sou da geração da Xuxa, de quando ela fazia filmes eróticos e ganhava presentes do Pelé, e considero-a uma das piores infâmias nacionais contemporâneas, responsável por um exército de crianças alopradas, hipnotizadas pelo marketing e pela desinformação. Também o que se pode esperar de uma mulher com olhos tão tristes, repetindo o eterno personagem da figura leve e graciosa, que tem uma filha praticamente clonada e não pode revelar publicamente sua vida sentimental? Não deixa de ser uma valente, eu já teria suicidado-me ao vivo, diante das câmaras. Antes mandaria todo mundo à merda.
Para que o leitor não me ofenda e me chame de misógino, veado e outras injúrias piores, alerto que também não entendo patavinas desses “sarados” que rebolam, participam de reality shows, estão nas capas de revistas. Sei que o talento é zerado, nem preciso discutir, mas o sex-appeal é pior ainda, se é que existe. O único cantor nosso com menos de 50 anos que tem um certo fascínio sexual, é o Tony Garrido, da ótima banda funk Cidade Negra. Ninguém mais; podem balançar o rabo a vontade. Ok, estamos falando de arte, não vamos escorregar para a baixaria de outros pontos de vista, afinal como se costuma dizer, “quem ama o feio, bonito lhe parece”. Basta ver a idolatria adolescente em torno do mundo da moda, povoado por modelos sem qualquer fartura carnal, magricelos, anoréxicos e andróginos, estabelecendo suas próprias limitações. Ainda por cima bem pagos e influenciando uma camada de jovens caipiras que acreditam que ser belo é parecer fisicamente com a invenção quase abstrata de costureiros gays. Até onde vão parar as coisas ninguém saberá dizer. Deveria ser proibido modelo ou jogador de futebol ganhar acima de dois salários mínimos, e outra lei limitaria a exposição exagerada destes na mídia, aí quem sabe veríamos a possibilidade de outros caminhos menos banais e jecas para a nossa juventude transviada. Sim, sim, vamos a arte, caro leitor, se ainda me suporta.
Devo dizer que a cultura do Brasil tem muita importância para mim e tenho uma queda pelos inventivos com fé na gente do país, embora também deva queixar-me que as telenovelas há muito perderam o frescor, a poesia e a inteligência. Nunca mais Bráulio Pedroso, Dias Gomes ou Gilberto Braga no seu auge. Dancing Days é com certeza um clássico. E por que não remakes de O Rebu ou Bandeira 2. Vê-se chispas de entusiasmo e proeza artística nos textos de Manoel Carlos, na direção de Luiz Fernando Carvalho ou na dramaticidade de jovens atores como Selton Mello, Rubens Caribé ou Rodrigo Santoro. Não são suficientes para marcar uma época. Camila Pitanga não é nem nunca será Sonia Braga, Giovanna Antonelli passa distante da expressividade à Irene Papas de Glória Pires, e Malu Mader poderia levar o título perpétuo de “Yoná Magalhães revisitada”, sendo bem generoso e não querendo macular a star de Eu Compro Essa Mulher. Da TV aberta, só há sensibilidade satisfatória em A Grande Família, Os Normais, na Marília Gabriela um-pouco-cansada-de-guerra e no Metrópolis, da Cultura. Mesmo assim para se ver uma vez ou outra, na casa de amigos viciados em televisão. O Jô, que virou jargão dizer “Ele é tão inteligente!”, é um chato, um superficial, um gabola com o ego do tamanho de sua obesidade. Deixei de assistir seu programa há anos, ao descobri que só ficava sabendo bestices do entrevistado.
Vai um pouco mais de três anos que escrevi, para os leitores navegantes do The Brazilian (ou seria da Go?), que nada é mais assustador na arte brazuca que a mediocridade musical, com pagodes, forrós e axés atropelando belezas como Noel Rosa, Villa-Lobos, Pixinguinha, Ary Barroso, Caymmi, Tom Jobim, Chico Buarque, Gilberto Gil ou Djavan. Continuo pasmo com esse samba do crioulo doido. Eu nunca esquecerei do verão passado, dentro de um alternativo (o mesmo que besta) lotado, em Ponta Negra, bairro praieiro da capital do Rio Grande do Norte, quando do nada ouviu-se uma música melosa e desafinada, que narrava uma insípida desilusão amorosa, e uma pobre garotinha de uns dez anos, com cara de fome e lábios carnudos, começou a cantá-la meigamente e logo a seguir todos os passageiros, absolutamente todos, cantaram a música que eu nunca tinha ouvido antes (e felizmente nunca ouvi depois), sem errar uma palavra. Parecia o musical Dançando na Escuridão, acrescentando miséria tropical e um calor escaldante. Só que a voz não era a da Bjork, óbvio. Portanto, no meio de toda essa poluição sonora, essa estupidez musical, essa ignorância coletiva, fica difícil chegar a diversidade de talentos irresistíveis como Zeca Baleiro, Cássia Eller, Lenine, Ná Ozzetti, Bebel Gilberto, Carlinhos Brown, Marisa Monte, Chico Science, Paulinho Moska, O Rappa, Virgínia Rodrigues, Oto ou Daúde.
Desde o sucesso de Central do Brasil, que o cinema brasileiro vem melhorando, superando os sofríveis anos 70 e 80, mas com exceção de Sérgio Bianchi, Walter Salles e Andrucha Waddington não há nenhum cineasta acima da média, nenhum novo Joaquim Pedro de Andrade, Luís Sérgio Person, Arnaldo Jabor ou Hector Babenco. Por mais que a mídia tente vender-nos Beto Brandt, não é uma nova linguagem cinematográfica. Prefiro o pessoal de Pernambuco, da Árido Movie, do Baile Perfumado: Lírio Ferreira e Paulo Caldas. Nomes como o de Carla Camuratti, Roberto Santucci Filho ou Sandra Werneck não devem ser levados a sério. Os radicalmente experimentais? Que eu saiba não há nenhum discípulo de Bressane, nem mesmo o Jorge Furtado. Já o teatro brasileiro sofre de uma única e terrível enfermidade, a falta de dramaturgos, e até houve oportunistas como Gerald Thomas que investiram num teatro sem a importância das palavras, como se fosse possível. Talvez por isso coloquemos no céu nomes que não merecem a imortalidade, como os subestimados Nelson Rodrigues e Plínio Marcos. Deveríamos pôr em foco o Oduvaldo Vianna Filho, o autor de Rasga Coração. Mesmo assim, é um teatro benfeitor e com dons poéticos, pontuado por grandes diretores, atores, iluminadores e cenógrafos, de Antunes Filho a Gabriel Villela, de Maria Alice Vergueiro a Renata Sorrah, de Rubens Corrêa a Marco Nannini. Isso desde os anos 50. Sem contar a importância internacional do Festival de Teatro de Curitiba (FTC).
A qualidade dos jornais e revistas tem caído barbaramente, mas ainda é possível evitar a imbecilização lendo a Cult, os suplementos Rascunho (do Jornal do Estado, RS) e A Tarde / Cultural (do jornal A Tarde, Ba) , o Caderno 2 do Estado de S. Paulo, a Ilustrada da Folha de S. Paulo, a esnobe Bravo!, uma ou outra Caros Amigos, e a volta meio desencantada do Pasquim, que vale a leitura pela qualidade dos seus “meninos” mestres do jornalismo: Millôr Fernandes, Sérgio Augusto etc. Na literatura, alguns dos premiados do 44 Prêmio Jabuti merecem realmente honrarias, como os veteranos Manoel de Barros (O Fazedor de Amanhecer), José Paulo Paes (Socráticas) e Haroldo de Campos (tradução da Ilíada de Homero), mas quem são os novos do pedaço? Sem pensar muito lembro do Milton Hatoum, Silviano Santiago e Ivo Barroso, que não são assim tão novinhos. Não me venham falar do artificialismo sem luxo de Marçal Aquino, Patrícia Melo, Tony Bellotto ou Fernanda Young. Vou logo dizendo que sou leitor de Guimarães Rosa, Autran Dourado, Graciliano Ramos, Torquato Neto, Hilda Hilst, Lúcio Cardoso, João Cabral de Mello Neto, Arnaldo Antunes, Antonio Cícero e Ferreira Gullar. Tolero certos excessos da mídia aceitando com reservas Rubem Fonseca, Adélia Prado, Paulo Leminski, Ana Cristina César e Caio Fernando Abreu. Loucura total é a divulgação acelerada de Alexei Bueno como uma super-revelação. Uma pauleira sem graça nenhuma. Ele é tão ruim que dá pena. Os sites culturais estão cheio de pessoas escrevendo e em alguns se encontram facilmente 400 ou 500 delas mostrando seus trabalhos. Não há um boom qualitativo. São meio screenagers, constrangedores, com raros acertos. Virtualmente, acompanho as revistas A Arte da Palavra, Blocos (editada com paixão pela poeta Leila Miccolis), Agulha e Rio Total.
Com prazer e reflexão, se lê as tirinhas em quadrinhos vindas dos neurônios atentos de Angeli (Chiclete com Banana), Laerte (Piratas do Tietê), Glauco (Geraldão), Adão Iturnesgarai (Aline) e Fernando Gonsales (Níquel Náusea), que denunciam o processo de idiotia que passamos. Será que eles serão os vultos que imprimirão distinção à nossa abusada nação? Será que levarão-nos ao orgulhoso carnaval da cultura e da civilização? Ah, que responsabilidade bizarra! Não são tempos de novos Glauber, Oiticica, Ziembinsky, Tom Zé, Oswald & Mário, Lina Bo Bardi, Marília Pêra, Maria Fernanda, Caetano, Raul Cortez, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Tivemos os suspiros de Mira Schendel, Leonilson e Luiz Carlos Ripper. Temos Afonso Beato, Mário Cravo Neto, Sebastião Salgado, Miguel Rio Branco e Walter Carvalho. O grupo Corpo, a escultora Carmela Gross e a atriz baiana Rita Assemany. Quem mais faz a arte certa? Por que não se queixam da decadência do ensino, do descaso do governo e da eterna improvisação? Mas o que é a arte certa? Como é possível saber lucidamente se a nossa criação não é uma boa droga? Segundo uma sábia amiga, a escultora catalã Pepa Armenté, não é necessário se preocupar com tal questão, o ideal seria fazer uma arte sincera, do fundo d’alma, mesmo contra os modismos e correntes da nossa época, e o resto vem com o tempo. Então pergunto: “O público que nunca aprendeu a ver além da mercadoria primária, do monopólio da burrice, como chegará a tal arte sem disfarces?".
Antonio Júnior (*)