UMA VEZ SÓ NÃO BASTA?
(A forma e o conteúdo em “A Casa das Sete Mulheres”)

O problema da forma na televisão tem total similitude com o das outras artes. É impossível separar a forma de uma obra de arte do seu conteúdo. É a técnica e o intelecto como um fim em si. A forma utilizada por Jorge Fernando, por exemplo, é rápida, quase histérica, algo entre a chanchada e a comédia sofisticada maluca da Hollywood da época dourada. Guel Arraes mistura certa sinceridade do cinema independente contemporâneo com códigos inocentes tipicamente brasileiros. Walter Avancini apostava numa direção acadêmica, correta, destacando o trabalho do ator. Luiz Fernando Carvalho, responsável pelas epopéias de Benedito Ruy Barbosa, domina os grandes planos, a imponência visual, uma lentidão contundente. Sendo assim, é bastante fácil identificar a direção de qualquer um deles.

Jayme Monjardim, o diretor que desde “Pantanal” (1990) parece não ter consciência da forma, se atrapalha, tropeça numa técnica impecável e em cenas de cartões postais encaixadas para provocar a afetividade popular,  esvaziando o conteúdo. Todos estes defeitos estão presentes nos primeiros capítulos da superprodução  “A Casa das Sete Mulheres” (2003), uma série com pretensões nada modestas. A paisagem gaúcha, que deveria ser o cenário para a aventura heróica de Bento Gonçalves e suas fêmeas, passa a ser mais importante que essa mesma aventura. A câmera, em vez de ocultar-se como instrumento, expõe-se para exibir-se, com seus recursos ilimitados de sedução. Os atores servem de figuração à visão sofisticada dos efeitos técnicos e da natureza bucólica do que ao sentido dos sentimentos dos seus personagens. Como bem disse o jornalista Xico Sá, na Folha de S. Paulo, “a mais linda paisagem de Monjardim é aquela das mantas de charque, água na boca, deliciosa metonímia fiscal da guerra de todos os farrapos”. Concordo.

Claro que visualmente é impactante, grandioso e sedutor, mas também superficial, enganador e esquecível, pois não toca o coração. A preocupação pelo efeito fotográfico atraente, pelas composições plásticas requintadas e pelo ritmo mais das imagens do que da própria história, provoca uma barreira saliente, que impede uma criação autoral e sensível. Maneirismos e não forma é o que retira a esta série a sua autenticidade e a torna, apesar de provocar uma exterior admiração, incapaz
de nos permitir uma comunhão profunda. Em face da fatalidade da opção do diretor, ou do que ele crê ser o melhor método de dirigir, são necessários atores que não brilhem em cena e transformem-se em objetos que adornem o seu ritmo pouco inspirado. Não é a toa que Giovanna Antonelli é a sua musa atual, como já o foi Cristiana Oliveira, atrizes de poucos recursos.

A teledramaturgia como forma de comunicação humana é cada vez mais rara. Ela, com contadas exceções, de “Engraçadinha, Seus Amores e Seus Pecados” (1995) a “Por Amor” (1997), não se preocupa em ser um radical meio de testemunho do homem do nosso tempo. Não dá provas de maturidade. “A Casa das Sete Mulheres” não foge à regra e banha-se na atmosfera do exotismo. Parece mais preocupada no fascínio calculado de um certo turismo, como um interminável anúncio
publicitário buscando captar visitantes para o Rio Grande do Sul. Confesso que é uma ambientação admirável. E o seu ritmo envolvente, desdobrando plástica, mas não há um mundo artístico próprio, não há uma inteireza absoluta, não há uma veracidade interna.

O elenco de 70 integrantes está bem, embora fragilizado por um bom número de canastrões. A paulistana Nívea Maria, uma veterana de primeira qualidade que iniciou a carreira em 1964 e teve os seus melhores momentos como a doce Jerusa de “Gabriela” (1975), a ambiciosa Rosália de “Dona Xepa” (1977) e a forte Donana de “Terras do Sem Fim” (1981), tem aqui uma oportunidade justa para consolidar seus méritos. A sua dona Maria, uma espécie de Bernarda Alba, uma mulher seca e infeliz, é o típico personagem que sempre é dado para Fernanda Montenegro ou Marília Pêra. Ela não decepciona e tem segurado com rédeas firmes e densidade, a tensão necessária. Parece um vulcão prestes a explodir. A Rosário de Mariana Ximenes, uma atriz que num piscar de olhos revela inusitadas emoções, é uma comovente heroína romântica numa tabelinha hábil com Thiago Fragoso (o angelical oficial do Império, um “caramuru”) e Murilo Rosa. Se como a Isabel de “A Padroeira” (2001) passou a perna na protagonista Deborah Secco, nesta nova atuação pode ofuscar diversas coleguinhas, como já tem acontecido. No filme “O Invasor” (2001), de Beto Brandt, Ximenes já havia demonstrado que é uma atriz de futuro. As presenças de Beth Mendes (a linda Renata de “Beto Rockfeller”, 1968), Rosi Campos, Jandira Martini, José Dumont e Luís Mello elevam o nível da obra. Thiago Lacerda, marcadamente apenas um bom bife, tem como o aventureiro Giuseppe Garibaldi o seu melhor momento na televisão. Não que atue, mas copia muito positivamente os tiques e o charme do jovem Clark Gable. A fada de Camila Morgado, uma filha de Avalon que conduz a narrativa, chama a atenção. Vamos esperar a hora e a vez da belíssima Daniela Escobar, que faz a Pérpetua.

Pode-se, porém, afirmar, sem nenhuma dúvida, que o estreante Werner Schunemann (do filme “Netto Perde Sua Alma”, de Beto Souza e Tabajara Ruas, 2001) não desenvolve uma intensidade necessária para papel do herói típico como pede o roteiro. Não que seja ruim, muito pelo contrário, mas passa um naturalismo tipo Marcos Palmeira que não aprofunda (ou desenvolve) o importante personagem. Ao vê-lo em cena não consigo deixar de pensar, “Meu Deus, imagine o que o Paulo Betti faria como o líder dos farrapos”. Inclusive, Schunemann compromete o trabalho da excepcional Eliane Giardinni,
pois não existe uma química entre eles, não convencendo o público do amor ardente e indestrutível entre Caetana e Bento. Quando sussurram seu desejo sexual, nunca consigo imaginar  o que poderiam fazer na cama. Giardinni é muito sensual p ara ator tão insosso. Ela é uma diva, a nossa Susan Sarandon. Todas as vezes que há um confronto dela com o cínico e mefistófelesco Luiz Mello, uma luz vigorosa se acende e eu temo que o vilão seduza-a, pois não acredito no seu amor por Bento. Outro bom ator que não defende o seu personagem é o Zé Carlos Machado. Não sentimos nenhuma dó dele com os maltratos e indiferença de sua esposa inflexível, ele se apaga completamente confundindo a submissão do Anselmo com a inexistência real.

De qualquer forma, a reconstituição histórica é cuidadosa e o espetáculo que a Globo estreou na terça-feira e que exibe até o mês de abril merece ser visto por diversos motivos, embora com olhos clínicos. O roteiro dos seguros e pouco surpreendentes Walter Negrão e Maria Adelaide Amaral, numa livre adaptação da obra homônima de Letícia Wierzchowski, não decepciona, há de tudo um pouco, desde o amor romântico capaz de tudo ao misticismo,  desde o vilão mais terrível aos impulsos eróticos, desde a força da natureza ao clima político, tendo como pano de fundo as disputas de poder que marcaram a Revolução Farroupilha (1835-1845). O acúmulo de homens apaixonados, abandonados e insistentes também é divertido. Peca com a música enfadonha e a amabilidade exagerada e quase í ntima entre senhores e escravos, mas como Scarlet O’Hara já o fazia, e a obra entre várias chupadas, copia  “...E o Vento Levou” (1939), não cai mal. Acompanhar “A Casa das Sete Mulheres” é recordar clichês de Hollywood, de épicos de guerra a drama românticos, chegando a “A Casa dos Espíritos” (1993), com pitadas dos bangue-bangues de Sérgio Leone, do vazio da publicidade turística, da exuberância coreográfica de Kurosawa e da sexualidade tropical. E principalmente recordar “O Clone” (2002), do mesmo diretor e com boa parte do elenco. Mas uma vez só não basta? Sei que esta série nunca será “Os Maias” (2001), mas sua competência supera seus muitíssimos defeitos, e está a léguas do caricato “O Quinto dos Infernos” (2002). Merece êxito.

Antonio Júnior








Abaixo, comentário de Daniela Escobar, atriz da minissérie, sobre o texto acima, em 17 de janeiro de 2003:

Antonio Jr

É um prazer ler críticas fundamentadas, sensíveis e não simplesmente opiniões pessoais partidárias.
Concordo com muitos pontos e agradeço o “belíssima”. Minha personagem “entrou” ontem (dia 16, quinta) na trama, ou
melhor, começa a ter desde ontem alguma chance de mostrar alguma coisa, na medida do espaço que lhe permitam
ter... gostaria muito de saber sua opinião, caso tenha assistido, pois como disse acima, é sempre um prazer ler bons textos e
tais são raros no meu meio profissional.
Um abraço

Daniela Escobar


 
 
 
 

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