EPISTOLEIROS

                No admirável mundo novo em que quase a humanidade inteira se toca com as mãos, a um só tempo, escrever cartas pode parecer prosaico ou desusado, mas para quem as pratica, como o escriba que vos fala, no melhor estilo márioandradino, é insubstituível. Os obsessivos concordarão comigo: dependendo da freqüência ou de sua tensão inerente, toda carta pode até ser um gênero literário, íntimo da confidência, primo do "jornal" francês, ali onde o coração de um homem nunca trapaceará consigo próprio. E há mais: ninguém escreve cartas senão tangido por enorme solidão. É uma fala no escuro, jogada no ar, como a um pombo-correio, e de direção certa, construída para que pouse, ao menos com sinceridade, nas mãos de quem, paciente ou impacientemente rasgará o envelope. Sem advinhar o teu dia que é hoje, decifrando-o depois levado pelas asas do avião noturno como a uma coisa toda viva. Assim, penso, o destino das cartas, a um tempo sozinhas e habitadas pelos ruídos de uma fantasma companhia.
                Dos inúmeros epistoleiros que tramam mensagem nos céus do país, um me é particularmente caro, pela fidelidade, pela delicadeza com que grafa o sublime nas costas do papel de usadas carteiras de cigarro, pelo amor desconcertante aos cachorros e à arraiamiúda do meu país, pela considerável cultura literária, pelo gênio que lhe moveu as mãos ao erguer um clássico da literatura brasileira como "Malagueta, Perus e Bacanaço", pela inquietação não pouca que o faz um dos cinco ou seis maiores escritores vivos do país, pela humildade essencial e inextricável que o constrói um pingente em bronze, este valente epistoleiro, de coração perdulário, tem um nome e joga a "glória" pela janela — como uma coisa suspeita; tem nome de gente, tem por nome João Antônio.
                Outro que cultiva a epistolagem com disciplina espartana e nunca fria — tem apenas 23 anos, discute com os irmãos Campos de igual pra igual, já tirou a roupa em frente ao "Sol" de Ipanema em porno-poético-protesto, e desenvolve hoje uma das mais avançadas pesquisas, em todo o mundo, em torno das possibilidades da poesia holográfica e é uma das culminâncias da chamada Geração-80 no país, e principalmente não sossega, um só' dia, sem que toque o futuro com os dedos, esse judeuzinho privilegiado, Eduardo Kac, que mora no rio mas — de há muito — já pôs os pés em marte. Está aí (doce) prova de que podem irromper todas as van e transvanguardas, mas a missiva permanece — com o mesmo cuidado que punha nelas Machado de Assis ou Pero Vaz de Caminha.
               Mas teria que ser Minas para também cultivar o saudável hábito com esmero: me vem de Ouro Preto, de suas ladeiras e do alto céu, com a regularidade de um escriturário a conversa polida e cheia de talento do poeta Guilherme Mansur, editor da famosa "Poesia Livre", saquinhos poéticos que circulam por todo o país. Mansur encara o ofício com paciência e método e faz, vez em quando, que aqui no subúrbio a manhã aconteça, ainda que suja de sol.
                Quem não poderia igualmente escapar ao registro destas linhas é a admirável figura humana do meu amigo, o escritor Caio Fernando Abreu, capaz de compor toda uma carta onde, a cada parágrafo, a vida delicada chore, e ainda assim alcançar a suprema façanha de enfiar um sol no envelope. Para quem lhe conhece a prosa, das mais respeitáveis do Brasil, pode imaginar o que este bruxo chega a fazer com a dor de seu domingo em São Paulo ou com a alegria das manhãs amorosas.
                Entre os ternamente cordiais, injusto não lembrar Carlos Drumond de Andrade, com sua letrinha firme e segura, registrando o sol do Rio, a poesia antiga, os embaraços dos oitenta anos e sobretudo a ácida descrença da hipotética "imortalidade" dos poetas, ou enviando livros com dedicatórias suntuosas. Aprendeu com Mário de Andade a larga lição do amigo, justamente de uma amizade construída quase em exclusivo, através a correspondência de todo uma vida.
                No rol dos missivistas eventuais, mas sempre mordidos pelo veneno, caberiam dezenas, mas pelo espontâneo amor às cartas, por justiça, sou obrigado a destacar alguns que iluminam a velha esperança e fazem a azaléa nascer mais nova, obrigado, Amém, Leila Míccolis, José Edson Gomes, Dalva Ventura, Benedicto Lacerda Neto, Lindolf Bell, Jorge Carlos Sade, Marilu Condé, Maria Helena Cardoso, e o seu admirável amigo Barriga, bamba dos morros cariocas, competente pintor de paredes, sambista magistral, cujo luxo será contado um dia na Avenida, ele, o legítimo invento da carta de invariável friso verde-amarelo, sobrescrito a garranchos, os selos de ponta cabeça e uma gargalhada dentro.

Wilson Bueno

Do livro: Bolero's Bar, Ed. Criar, 1986, Curitiba/PR

 

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