Qual é a função do escritor no mundo de hoje? Acusado,
ainda, de desconhecer a realidade e isolar-se na sua torre-de-marfim, representa
o papel de sempre: é responsável pela vitalidade da linguagem
humana e pela imagem do homem de seu tempo. Mas se por um lado vivemos
um tempo complexo, de valores controvertidos, primando pela ausência
de padrões éticos, por outro, com o desenvolvimento fantástico
dos meios de comunicação, transformados em técnicas
de controle de massa, a linguagem tornou-se inexpressiva, perdeu a capacidade
de influir, de moldar consciências e refletir a condição
humana na forma artística.
Não existem mais torres-de-marfim; o mundo é a já
velha aldeia global onde o homem perdeu a intimidade, a vivência
interior, a faculdade criadora, a autonomia de movimentos; não há
alienação possível, a realidade penetra-nos pelos
poros, e somos incapazes de modificá-la, vivemos de idéias
pré-fabricadas. Somos o rebanho mansamente conduzido pelo canto-de-sereia
da sociedade de consumo; fervilham desordens existenciais, como uma prova
de que o homem quer resistir, mas a máquina lhe tolhe a visão
e ele continua a funcionar como peça imperfeita de uma engrenagem
inexorável. Dentro desse condicionamento, a palavra do escritor
não conta.
A palavra, no entanto, não se cala. O fato de determinado escritor
não se manifestar, não participar politicamente da vida de
seu país, por exemplo, não significa alienação;
provém de uma postura íntima, de sua condição
de trabalhador solitário; ou é reflexo de uma fissura do
homem: servo do espírito e do Estado. O alto senso de liberdade
do artista coloca-o em oposição ao Estado; já Platão
excluía o poeta de sua República. Os seus anseios são
sufocados pelo poder estatal e pela necessidade de sobreviver. Mas a sua
própria omissão pode ser uma forma de contestação;
o próprio fato de existir é uma denúncia, uma espécie
de câncer no seio de um organismo programado eletronicamente.
Até que ponto o escritor pode ou deve dar a sua contribuição
direta à sociedade? Talvez até o ponto em que não
fira a sua individualidade. O seu território é o mundo da
cultura simplesmente ou um indefinido mundo interior? A cultura é
a ideologia da sociedade, são os cordéis invisíveis
que a fazem funcionar; o mundo interior é, embora abstratamente,
um grito de liberdade e a negação dessa ideologia. Quando
o escritor cria uma obra de arte, dá uma forma à sensibilidade
e contesta a cultura, reorganizando-a. A sua linguagem nunca poderá
ser a da mera comunicação; deverá ser a da subversão
da ordem, pois remete-nos à instauração de outra ordem,
de outros valores.
Isto a palavra do escritor, de uma forma ou de outra, representa. A pobreza
de sua contribuição deve-se a uma perda de representatividade,
como agente forjador da visão humana, que sofreu. A palavra, se
ainda não é um instrumento castrado, certamente torna-se
dia a dia mais estéril. O escritor aparece hoje como um diletante
antiquado, quando mesmo tratando-se de simples diletantismos, a sua obra
sempre foi o molde do destino do homem. Quem sabe a derrota do homem, com
seu destino estreitado na pequenez de compartimentos estanques, esteja
ligada à perda de lugar da palavra. Mas enquanto houver sensibilidade,
a arte continuará existindo. Ainda que infrutiferamente, o escritor
continuará criando.
José Carlos Mendes Brandão