“Literatura é novidade que permanece novidade.” Essas palavras de
Ezra Pound, freqüentemente citadas, embora não definam o que
é literatura, dizem bem de uma das qualidades que um texto deve
ter enquanto pertencente a essa arte da linguagem: a atualidade, a intemporalidade,
a universalidade, o poder de expressar a visão de qualquer época
e qualquer lugar. É o que penso ao reler a Colônia Penal,
de Franz Kafka.
A crítica teima em ver implicações da obra de Kafka
com a sua personalidade perturbada, os problemas com o autoritarismo paterno,
a sua origem judaica. De fato, o escritor configura uma visão do
mundo que não se forma isoladamente, mas faz parte de todo o fenômeno
psico-social que o envolve; a sua própria expressão artística,
conquanto necessariamente pessoal, junge-se a esse contexto. Mas o pessoalismo
acentuado, disfarçado ou não, a obra enquanto criação
do espírito, dinâmica, fruto de um movimento interior e ao
mesmo tempo de um trabalho consciente, não pode ser catalogada em
compartimentos estanques. O que não quer dizer que todo enfoque
crítico não possa ter sua validade; afinal, a obra presta-se
a inúmeras leituras, tantas quantas forem as vezes que for lida.
Apresento algumas considerações desta minha leitura.
A Colônia Penal costuma ser vista como uma premonição
dos horrores do nazismo, campos de concentração, fornos crematórios.
Eu sempre penso que torturas existiram em todos os tempos, sob as mais
variadas formas. Penso nos Tribunais da Inquisição ou nos
paus-de-arara, geladeiras, dragões e outras câmaras de delícias
que dizem existir até no Brasil. Penso em uma indústria sofisticadíssima
de sofisticadíssimos instrumentos no paraíso dos Estados
Unidos, com clientela certa em certos países do Terceiro Mundo;
haveria também um campo de treinamento de métodos infalíveis
para demover consciências renitentes. Sim, parece impossível
pensar nos terrores de Kafka desvinculados deste nosso tempo ignóbil.
Talvez a Colônia Penal seja protótipo da frieza tecnológica
para se administrar a justiça do Estado dos tempos do nazismo como
dos atuais capitalismo ou socialismo. O Santo Ofício teria tido
a graça da impassibilidade de alguns santos aparelhos de sevícias.
Lembro-me do empalamento legado pelos mouros, que consistia em sentar-se
o cliente num espeto de ferro ou madeira pontuda e deixar-se cair; não
era uma tecnologia requintada, mas havia o requinte na assistência
postada diante do espetáculo, enquanto se regalava com pedaços
de leitoas deglutidos com garbo de deuses. Havia e há do que se
envergonhar a espécie humana.
Impossível se analisar criticamente a obra de Kafka; há ilações
e ilações que a sua leitura nos suscita; como prendermo-nos
a desmontagens estruturais ou averiguações dos efeitos puramente
expressivos de sua linguagem? Os seus personagens estranhos, movendo-se
num ambiente esquisito, distante, fora dos caracteres do que entendemos
por normalidade, acabem por convencer, chocar, são reais, naturais
demais; não se entende como, mas esse mundo diferente torna-se próximo,
inquietante, lugubremente parecido com o mundo em que vivemos. E sem pretensões
precípuas a crítico literário, as idéias que
apresento são um relato do que me sugeriu a minha última
leitura. Quando acompanhava a descrição da Cama, com o Desenhador
e o Ancinho, veio-me à lembrança um nome semelhante foneticamente
a esse último, o Anjinho, um espremedorzinho, que ouvi contar ter
existido nos tempos de Getúlio, para testículos. Depois não
querem que se chame o homem de animal! “Meu princípio fundamental
é este: A culpa é sempre indubitável”, diz o oficial
ao explorador neste pequeno conto do horror burocraticamente programado.
É a arte de punir o homem, castrar-lhe a vontade, a determinação
moral. E as considerações que me foram despertadas pelas
últimas notícias da ressurreição do nazismo
unidas à profecia numa lápide de confeitaria desta historinha
de fadas, que “depois de determinado número de anos o comandante
ressurgirá, e desta casa conduzirá seus partidários
para reconquistar a colônia”, essas considerações apequenam-se
ao serem escritas, diante do drama maior que se me levanta: a perda do
que o homem teria de mais precioso, a dignidade, a vergonha, o sentimento
humano, o respeito à vida. Perda infelizmente não condicionada
a qualquer governo, ideologias, conquistas de poder, ao que quer que seja;
perda, na evolução do homem, incorporada à sua condição.
José Carlos Mendes Brandão