KOLTÉS: SENTIDA VIOLÊNCIA
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Como reconhecer o talento de um dramaturgo? Talvez identificando se o seu mundo ficcional mantém uma relação sincera e exata com o seu tempo, e que ele o expresse com sabedoria e força; que possua uma linguagem própria, não a de seus contemporâneos ou de seus personagens, mas a linguagem única e reconhecível do autor. Atualmente, poucos dramaturgos revelam tais atributos. Pode-se contar nos dedos. Na Europa, depois do pós-Guerra de peças inovadoras de Jean Genet, Samuel Beckett, Harold Pinter, Eugène Ionesco e Fernando Arrabal, e até os 80, não surgiu nenhuma escrita dramática fundamental. Os diretores tornaram-se as vedetes do teatro e o autor passou para segundo plano, perdendo sua aura e seu poder, mesmo com uma ou outra iniciativa singular. Há alguns anos o autor reencontrou seu lugar e as peças multiplicaram-se. Seguindo a idéia de Albert
Camus na década de 40, muitos deles trabalham em proximidade com o palco e com a cumplicidade do diretor. No meio de nomes como os franceses Valère Novarina (Le Drame de laVie) e Michel Vinaver (Iphigénie Untel), a inglesa Sarah Kane (4.48 Psychosis) e o austríaco Werner Schwab (As Presidentes) destaca-se o texto vivo de Bernard-Marie Koltés, o dramaturgo francês da segunda metade do século XX mais representado atualmente no mundo. Inicialmente marginalizado, Koltés (1948-1989) hoje é considerado um autor brilhante cujo teatro também pode ser lido como poesia moderna. Criador de linguagem única, tanto literária como coloquial, urbana e corrosiva, sua obra foi traduzida para vários idiomas e pouco a pouco chega ao público brasileiro. Ele nos oferece um mundo de luz e sombras incendiado por gritos, golpes, feridas e também tentativas, possibilidades e esperanças. Um mundo de dualidade, de solidão, de humanidade desumanizada. Autor dos esquecidos, dos anônimos, dos solitários, dos assassinos, dando-lhes a palavra para que denunciem sua crua e profunda realidade, suas ilusões e desenganos. Koltés trabalha com o que está à margem, com lugares sem nomes, resgatando consciências, o simbólico, o metafísico. Fala de exclusão social e suas paranóias eminentes, da solidão levada a um extremo desesperante. Todo o seu trabalho é pontuado pela marginalidade e o marginal do autor é atuante, atacando uma sociedade fechada nos seus preconceitos e valores. As personagens, num autêntico combate filosófico, fazem um levantamento das suas próprias vidas.
De personalidade complexa, homem de existência vertiginosa e que dos 18 aos 25 anos viajou como quem pratica uma aprendizagem necessária, pensou acertadamente que esta experiência lhe serviria para toda uma vida dedicada a literatura, embora em princípio acreditava que faria poemas ou novelas. “Meu desejo maior é escrever novelas. Se não o faço é porque não teria como viver”, declarou. Nos anos 70, desencantado com um sistema desalmado de vida e uma cultura de violência, passou por drogas, depressão, uma tentativa de suicídio e por um processo de desintoxicação. Depois de ver a diva Maria Casarés como Medéia, numa encenação de Jorge Lavelli, escreveu uma adaptação teatral de Infância, de Gorki, passando pelo curso de direção e dramaturgia da Escola do Théâtre National de Strasbourg, onde escreveu uma dezena de textos curtos nunca revelados ao público.
Nascido em Metz, filho de um coronel do exército, militante do partido comunista, homossexual, Koltés funda a companhia Théâtre du Quai, estreando oficialmente em 1977 no Festival Off de Avignon com o monólogo A Noite Logo Antes das Florestas (La Nuit Juste Avant les Fôrets), dirigido por ele mesmo e por Yves Ferry. Considerado um manifesto lírico, uma descida aos infernos e também um formoso grito de amor que se perde em uma noite fria e chuvosa, o drama é a voz de um imigrante. Não sabemos o seu nome, nem quem é, somente que sua pele é negra, está sozinho e que fala, fala sem parar. Em 1979 escreve Combate de Negros e de Cães (Combat de Nègre et de Chiens), um laboratório de pesadelos e insatisfações, onde a intriga está reduzida ao mínimo. Em um acampamento de obras públicas de uma multinacional francesa, morre um operário negro. Seu irmão se introduz misteriosamente no local vigiado por guardas enigmáticos para recolher o corpo, mas ninguém parece querer entregá-lo. Mas foi a estreita colaboração com o famoso diretor Patrice Chéreau no Théâtre dês Amandiers que o fez sair do anonimato, contribuindo a um maior conhecimento e rápida admiração por seu teatro.
Em 1982, Chéreau dirigiu Combate de Negros e de Cães (Combat de Nègre et de Chiens), assinando sucessivamente Cais Oeste (Quai Ouest), em 1985; Na Solidão dos Campos de Algodão (Dans la Solitude dês Champs de Coton), em 1987; e O Retorno ao Deserto (Retour au Désert), em 1988, que tiveram um grande sucesso. Além de Chéreau, suas peças foram encenadas pelos mais importantes diretores do mundo como Lluís Pascal (Teatre Lliure de Barcelona), Françoise Kourilsky (La Mamma de Nova York) e Peter Stein (Schaubuhne de Berlim). Atores como Michel Piccoli atuaram em suas peças tanto no teatro quanto em transmissões radiofônicas da Rádio France Culture. Sua obra, produzida num período de vinte anos, é composta além de peças, por uma novela (La Fuite à Cheval très Loin dans la Ville, escrita em 1973 e publicada em 1984 pela Editions de Minuit), traduções, adaptações e roteiros. No entanto, somente depois de sua morte prematura em Paris aos 41 anos, que Koltés começou a ser reconhecido verdadeiramente como dramaturgo, tanto na França como no estrangeiro, tornando-se um clássico do repertório contemporâneo.
Na Solidão dos Campos de Algodão, uma das suas peças mais famosas, duela com as palavras, que servem como elaboração de argumentos de defesa e negação, como para fundamentação de suas condições humanas, passando a isolar cada vez mais os personagens e criando entre eles um intransponível muro retórico. Roberto Zucco foi o último texto escrito por Koltés, baseado na história real de um criminoso que morreu no cárcere em 1988. É considerada por muitos a melhor de suas obras, e fala sobre um belo Anjo da Morte, aparentemente sem moral, mas também uma criatura poética e filosófica. Ele assassina, consecutivamente, o pai, a mãe, um policial e uma menina, sem motivo aparente. Diz Zucco: “Ninguém se interessa por ninguém. Ninguém. Os homens necessitam das mulheres e as mulheres necessitam dos homens, mas o amor não existe. Me excito com as mulheres por compaixão. Gostaria de nascer novamente e desta vez como cão, para ser menos desgraçado”.
No momento em que é constantemente montado, Bernard-Marie Koltés é lembrado como um dos dramaturgos mais inovadores e dos mais singulares. É um teatro em estado puro, obras em que a forma e o conteúdo estão estreitamente unidos, assim como as paixões, as idéias e os grandes temas universais, em personagens que se cruzam, que se encontram ou se ignoram em um universo fragmentado e preciso. Considerado por Heiner Muller o Shakespeare de nosso século, defensor dos autores contemporâneos, traduzido em mais de trinta línguas, encenado em cerca de cinqüenta países, sua obra atinge inacreditáveis territórios. Podemos enxergar suas peças como tragédias modernas que nos tocam e nos desequilibram com sua linguagem inovadora e privilegiada. Tê-lo entre nós é uma preciosidade num momento em que o teatro se direciona para comédias burlescas e banais fórmulas televisivas de consumo rápido.
A Montagem Baiana
Monstro sagrado do teatro francês contemporâneo, Bernard-Marie Koltés escreveu tal como viveu: de maneira fulgurante. Suas obras, sombrias e terrivelmente luminosas, estão povoadas de personagens poderosos com uma linguagem de uma beleza selvagem. Escritas com uma preocupação por reencontrar-se, suas peças não se montam como as de um autor clássico. Koltés é ardente. Sua linguagem obriga o corpo do ator a funcionar de uma maneira diferente. Os atores devem ir mais do que sabem fazer; devem sentir, mais que pensar, aquilo que dizem. Eu assisti três montagens de textos de Koltés. Sallinger, inspirada no mundo do célebre escritor norte-americano, com direção de Carme Portaceli no Mercat de lês Flors de Barcelona, e Quai Ouest, em Salamanca, com Sergi Belbel no comando e uma brilhante Julieta Serrano fazendo a sem-teto sul-americana Cécile. Comovi-me acima de tudo com os textos poéticos, inquietantes, radicais e intuitivos. São montagens do ano passado. Este ano estive na estréia de Na Solidão dos Campos de Algodão, no Teatro Moliére da Aliança Francesa de Salvador.
O texto que fala sobre a solidão e a impossibilidade de comunicação, desvela um extraordinário diálogo entre dois homens, cujos caminhos se cruzam por acaso num beco esquecido de uma grande cidade qualquer. Chamam-se Negociante (Narcival Rubens) e Cliente (Gideon Rosa). Sem saber o que o primeiro vende nem o que o segundo pretende comprar, seus impasses geram um sentimento de solidão e a descoberta da dificuldade nos relacionamentos. O objetivo da negociação permanecerá desconhecido até o fim. Podemos pensar em drogas ou sexo, mas o que conta realmente é a insatisfação permanente que condena o ser humano aquilo que ele mais teme e que é seu destino: a solidão. O público assiste à montagem em meio aos atores e cenários, sentado no palco. É incômodo e a beleza do texto se perde muitas vezes no desconforto e no ruído de alumínio amassado.
Não é a primeira vez que Koltés é montado em Salvador, a diretora alemã radicada na Bahia, Nehle Franke, já o fizera em 98 com Roberto Zucco. Foi bem recebida pela crítica. A montagem de Adelice Souza tem o fascínio de revelar um texto que joga com o mistério e conta com dois grandes atores, mas mesmo o extraordinário Gideon Rosa já teve interpretações mais vigorosas. Narcival Rubens tem momentos arrepiantes. É uma peça de intenções e dubiedade, de troca de olhar e agressividade. Ninguém se revela, ninguém se descobre. No entanto, o espetáculo não conseguiu depurar a consistência poética das palavras e a frustração é evidente. Como já disse, a cenografia pouco eficaz de Danillo Barata tampouco ajuda e a iluminação frouxa de Fábio Espírito Santo não é um elemento significante. Talvez uma encenação cálida, transparente e distanciada, aflorasse melhor os sentidos. De qualquer forma, a eleição da obra já é razão suficiente para ver a montagem audaciosa.
Toda a obra de Bernard-Marie Koltés:
Les Amertumes (1970)
La Marche – Le Procès Ivre (1971)
Récits Morts (1973)
L´Héritage (1972)
Des Voix Sourdes (1973)
La Nuit Juste avant les Forêts (1976)
Sallinger (1977)
Combat de Nègre et de Chiens (1979)
Quai Ouest (1985)
Tabataba (1986)
Dans la Solitude des Champs de Coton (1986)
Le Retour au Désert (1988)
Roberto Zucco (1988)
A Seguir:
2. Sarah Kane.
3. Werner Schwab,
4.Fernando Bonassi.
Antonio Júnior