Como destruir o processo criativo ou Como desconstruir a educação

No livro "O pequeno príncipe", de Exupéry, o aviador desistiu de desenhar aos seis anos de idade após dois incidentes. Quando ao terminar o que chamou de seu desenho número 1 (uma jibóia que engolia um elefante) e ao perguntar aos adultos se o desenho lhes fazia medo, recebeu como resposta que um chapéu não poderia causar medo em ninguém. Em uma segunda tentativa desenhou o interior da jibóia para que pudessem compreender mas aconselharam-no a desistir da arte de desenhar.

Sempre gostei de ler e escrever mas confesso que desenho nunca foi o meu forte e muito me incomodava, no primário, a insistência da professora para que eu desenhasse. Para satisfaze-la rendi-me, mas encontrei outro problema: o quê desenhar? Percebi que as outras crianças faziam basicamente a mesma coisa; uma paisagem composta por casa, árvores, flores, sol, passarinhos, etc.

Meu desenho número 1 foi uma casa simples, de linhas retas, que copiei de alguém. Possuía uma única porta fechada, arredondada na parte de cima, com uma maçaneta. Acima um pequeno sol completava a paisagem.

Sempre muito observadora notei que minha adorável professora unia-se a outras para discutir sobre o processo de análise da realidade familiar e da personalidade da criança através de seu desenho. Um desenho triste, sombrio, com predominância de cores escuras, denotaria uma criança triste, com uma estrutura familiar problemática; em contrapartida, um desenho colorido e alegre denotaria uma criança bem resolvida e feliz. Seria possível diagnosticar um processo de violência ou abuso familiar, distúrbios sociais e até mesmo psíquicos através da simples observação. Usavam os alunos como exemplos e eu não fugia à regra.

Deve haver alguma explicação freudiana para a mania que alguns espécimes adultos têm de ignorar a capacidade cognitiva infantil ao falar sobre a criança em sua presença como se ela ali não estivesse ou pior, não se desse conta de que estão falando dela.

Descobri assim que o meu desenho era triste porque a casa não tinha janelas e a porta estava fechada. Comentaram ainda sobre outra aluna e percebi que só a janela não bastava, precisava de cortinas e de um vasinho de flores que representasse a felicidade familiar; a cortina também deveria estar aberta pois fechada era preocupante. Além disso, um desenho verdadeiramente interessante deveria apresentar outros elementos além de um sol e uma casa.

Decidi então mudar o meu desenho. Na casa coloquei uma janela com cortinas abertas e um vaso de flores, uma árvore grande, o sol e muitas nuvens, a porta deixei fechada, pois não sabia como desenhá-la aberta. Tive ainda o cuidado de colocar folhas nas flores. Sabe-se lá.

As incansáveis e insensíveis profissionais do ensino continuaram falando a nosso respeito e analisando os nossos desenhos em sala de aula. Eu agora mantinha os meus ouvidos mais apurados. Ouvi dizer que meu desenho não tinha bases sólidas, pois não possuía chão, a árvore era vazia, sem frutos, e não havia elementos vivos como pessoas ou animais. "Com certeza a aluna deve ter sérios problemas familiares".

Na verdade eu detestava mesmo desenhar e perder o tempo precioso em que poderia estar inventando as minhas histórias. O pior era ter de ser comparada a outros exímios desenhistas da turma, eu e meu desenho tosco, sempre o mesmo. Imagine se eu iria perder meu tempo inventando outro que pudesse agradá-las.

Por quê não me mandavam fazer uma redação? Por quê nunca me pediram para ler o que escrevia? Meu caderno de versos, minhas pequenas histórias, os livrinhos que fazia com quadradinhos de papéis grampeados? Não! Tinham que analisar o maldito desenho. Que seja! Observei os outros, os queridinhos da turma, e copiei algo de cada um.

Na casa coloquei um número três, gostava deste número. Coloquei o tal chão, fiz um menino e uma menina sorridentes, um caracol e uma tartaruga, os únicos animais que sabia desenhar além de um rato que minha mãe havia me ensinado, mas achei que não iam gostar de ver um rato no meu desenho. No céu, além das nuvens, acrescentei umas gaivotas, com isso o sol ficou espremido e tive que move-lo para a quina da folha; já tinha visto alguém fazer isso, e acrescentei a ele olhos e boca, sorridente, é claro. A professora disse que sol não tem nariz e riu quando na primeira vez coloquei um. Tirei o nariz, só não entendi como um sol que não tem nariz pode ter olhos e boca. Coloquei maçãs vermelhas na árvore e fiquei chateada quando a vi contando as frutas, não tinha ouvido nada sobre isso. Será que tinha feito poucas ou muitas? Nunca descobri. Desenhei ainda algumas flores mas nada disso parecia ser o suficiente. Por mais que eu tentasse, por mais que eu copiasse, meu desenho sempre foi o pior da turma e jamais recebi um único elogio.


Com o passar do tempo fui aprimorando o meu desenho. Acrescentei umas pedras, gramas, matinhos. Coloquei telhas na casa e cheguei à conclusão de que cinco maçãs seriam razoáveis. Após ter ouvido que uma menina era equilibrada porque fazia um caminho até a casa e que um caminho significava que ela tinha um bom relacionamento no lar e por isso gostava de voltar para lá; eu, que também queria ser equilibrada, passei a desenhar desta forma.

Meu desenho número 1/9875 ficou assim:

Desta maneira continuei a desenhar por todo o curso primário. E se não recebi elogios também não fui mais criticada. Foi então desta forma que ainda em minha tenra infância destruíram toda e qualquer possibilidade de criação artística de minha parte, ao menos no que diz respeito ao desenho e às artes plásticas. E para minha sorte, felizmente, não quiseram ler minhas histórias, não me pediram para fazer redações e nunca viram meus versos. Assim pude desenvolver-me naturalmente na arte de escrever, entre erros e acertos, é verdade, mas por mim mesma e totalmente de posse de meu próprio processo criativo.

Flávia Côrtes

" Voltar