HÁ MAIS VAGAS DO QUE VOGAS
Vivemos ainda hoje sob a influência dos simbolistas. Até certo ponto sob a influência de Charles Baudelaire que percutiu a geração do fim dos anos Mil Novecentos, e a 'precurtiu'. A poesia depois do simbolismo jamais foi a mesma. A ordem consciente deu lugar à desordem inconsciente, filtrada na contenção duma estética renovada, que permitiu o excesso alucinado e/ou 'alucinogenado', mas não o instituiu como lema. Os que a partir dessa época são notáveis sabem controlar a inconsciência ilimitada, e sabem-na estruturar na contenção.
A justo título chamou-se a Stéphane Mallarmé, o Mago do Verbo. Ir ao encontro da essência foi uma incessante procura numa experimentação de correspondências entre significados, significantes e referentes: "Atrás e dentro da rosa, encontra-se o ser ideal de rosa". No seu caso versificatório, ele sobrepõe as palavras e confunde-as. A preencher o modo, a musicalidade é um meio poderoso de efeito estético. Rimbaud, na verdade, tornou-se notável no manuseamento instrumental da sonoridade da linguagem, assim como Guillaume Apollinaire. Mas se houve movimentos contra esta vaga e esta voga, como a reacção romana de Moréas, o simbolismo não sucumbiu mais, e depois disso seguiu um curso de evoluções que nunca mais o perderam de vista e referência. Floresceu nos fins do séc. XIX e princípios dos XX, um néo-simbolismo e néo-romantismo, cuja máxima expressão aconteceu em Apollinaire. De Paris estas correntes literárias propagaram-se pelas línguas românicas, culminando em Portugal com a poesia de Camilo Pessanha, que abriu na sequência estética a vaga dos surrealistas lusófonos ainda hoje muito em voga.
Quando Mallarmé começa a dar os primeiros passos na poesia, invade-lhe a feitura e a admiração artísticas, a obra de Baudelaire e Edgar Poe. Historiando um pouco, registo: Paul Verlaine ganhava fama com edições sucessivas e estreitava com ele (Mallarmé) relações de aproximação. Mallarmé exercia o magistério (Ensino de Inglês) em Liceus e obtinha o reconhecimento dos seus pares: presidia a certames, festividades e celebrações. Em Jan. de 1896 morre Verlaine e nesse mês, Mallarmé é eleito Príncipe dos Poetas e no ano seguinte os jovens discípulos Henri de Régnier, Paul Claudel, Paul Valéry e outros rendem-lhe uma homenagem num álbum de poemas escritos em sua honra.
Os surrealistas que se lhe seguiram na busca da revolução autónoma da estesia, aproveitaram as inovações arrojadas dos simbolistas. É mesmo Apollinaire que é eleito seu Mestre, ao ser-lhe destacada a apologia do seu poema-testamento "La Jolie Rousse" de 'Caligrammes':
Nous voulons vous donner de vastes et étranges domaines
Où le mystère en fleurs s' offre à qui veut le cueilli
Il y a la des feux nouveaux des couleurs jamais vues
Mille phantasmes impondérables
Auxquels il faut donner de la réalité...
Poesia desprovida de constrangimentos a explorar os mistérios residentes no interior do homem, eis, em traços gerais, o lema da nova escola. Era uma procura em conjunto sem vontade de glorificar alguém em particular, os sonhos eram postos a circular, ia-se à procura dos mitos primitivos, sondando sonhos, ilusões de loucos, alucinações de nevrosados, e numa descoberta e conquista, explorava terrenos da psiquiatria: a hipnose, o desdobramento, a histeria, com Freud muito perto desta nova viagem pelo inconsciente - o seu material de estudo e análise.
Hoje vive-se de influências, sem Escolas imperiosas, na prática. Há mais vagas que vogas. O poeta escolhe o seu percurso, depois de várias experiências. Aliás o surrealismo assim mesmo estabeleceu o 'modus faciendi': o curso livre - a liberdade na escolha do caminho. E se é livre, também está liberto para reanimar a forma clássica (como por exemplo desenvolver a melhor estrutura que foi dada a conhecer pelo Renascimento O SONETO, e sagrou tantas gerações de Poetas, até aos e nos nossos dias); toda a modernidade pode cristalizar-se nessa forma: não deixa de ser uma jóia rara com o gosto duma peça estética actual. E convém ser dito, não exclusiva! - Há Poesia hoje noutras estruturas aligeiradas, em verso livre e solto que são obras primas, especialmente aquela que encontra a cadência ou o ritmo que a singulariza, e transforma - para melhor - a sensibilidade do seu leitor/auditor. E finalmente diria: não é necessário que a Arte seja útil e imediata, ou explícita, também a há que não parecendo ter nenhuma finalidade, existe só por si, e transforma pelo inconsciente a nossa inconsciência, donde a consciência provém, re-estruturando-a novamente com a subtileza das coisas insustentáveis.
Daniel Cristal
(Portugal)