O Sertão é do tamanho do mundo para o diplomata
Adaptação de "Guimarães Rosa, viajante", publicado em O Itamaraty na cultura brasileira(Francisco Alves), este ensaio descreve a trajetória do escritor na diplomacia, sobretudo sua corajosa atuação na Alemanha nazista.
"Viver é muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa" (João Guimarães Rosa).
João Guimarães Rosa prestou concurso para o Itamaraty em 1934, classificando-se em 2° lugar. Como de praxe, foram provas exigentes e exaustivas que trouxeram para o Rio o jovem que desejava conhecer o mundo e estudar línguas. Trinta anos depois de sua aprovação nos exames, em carta escrita ao seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, o escritor compôs o que intitulou de Bobagens biográficas, no qual admitiu, ainda que entre parênteses: "(0 gosto de estudar línguas e a ânsia de viajar mundo levaram-no a deixar a medicina)". De fato, a possibilidade das viagens constituiu um aspecto forte no processo de criação de Guimarães Rosa, tanto quanto a memória lhe serviu de principal matéria dos contos e novelas, na maior parte escritos longe da terra natal. É inegável que a obsessão do candidato a diplomata, para a qual a habilidade com idiomas lhe servia de arma poderosa, também se compunha de algum ressentimento social. Aos 26 anos, numa carta em que relatava à mãe a dureza dos exames; escreveu: "De 57 [candidatos], só 10 foram habilitados (...). Desses 10, talvez seja eu o único que não esteve ainda na Europa; além disso, posso garantir que esse concurso é o mais difícil que se processa no Brasil. (...) Assim, estou satisfeitíssimo, adquiri mais confiança em mim mesmo, e espanei os brasões".
As cartas redigidas pelo postulante ao Ministério das Relações Exteriores estão, obviamente, repletas de sensações originais: Orgulhoso, vencedor, Guimarães Rosa explica que poderia ter conquistado o primeiro lugar, caso estivesse mais calmo nas primeiras provas escritas. No entanto, como confessou em outra carta à mãe, estava "estonteado com o ambiente barulhento do Rio de Janeiro, e com o luxo magnificente do Itamaraty".Ironicamente, sua nota mais baixa foi em Português, na qual precisou dissertar sobre Rui Barbosa e sua influência nas letras, na política nacional e na Conferência de Haia. Mas, envaidecido, salientou que o exame oral fora a sua consagração, confessando que "banquei um pouco o cabotino, para impressionar". Não duvidava de que havia encontrado uma profissão na qual poderia dispor, criativamente, de suas qualidades intelectuais, sem contrariá-las, e até mesmo trazendo-as ao centro das suas ambições. Apenas um mês depois de ter sido aprovado, escreveu ao pai: "Tenho esperança de fazer carreira breve, e para isso empregarei todos os meus esforços, pois penso que descobri a minha verdadeira vocação".
Nomeado cônsul de 3ª classe em 11 de julho de 1934, João Guimarães Rosa foi promovido, no fim de 1937, a cônsul de 2ª classe, cargo com que chegou, no ano seguinte, ao Consulado em Hamburgo, onde permaneceu até 1942. O diplomata enviava longas descrições sobre a paisagem européia. Detestava especialmente a comida alemã, e muitas vezes se defendia com conservas de lata.
Porém, não foi longa a permanência de Guimarães Rosa o exterior como diplomata: pouco mais de oito anos. Uma vez promovido a embaixador, não chefiou embaixada, preferindo permanecer, por mais de uma década, e apesar dos insistentes convites, no cargo e chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras. Tanto quanto o seu pouco tempo de serviço fora do Brasil, também é pequeno o impacto da vida e da cultura estrangeira em seus livros. Ao contrário de Ronald de Carvalho e, mais acentuadamente, de João Cabral de Melo Neto, sua obra não foi diretamente influenciada pelos períodos que viveu no exterior. No póstumo Ave, palavra (1970) podem ser lidas as pequenas peças que abarcam desde o período na Alemanha até os derradeiros escritos no Rio. Como informa Paulo Rónai no prefácio, um dos títulos da coletânea, afinal rejeitado pelo autor, era Via e viagens. Nenhum dos textos demonstra o intenso trabalho de pesquisa vocabular, o rebuscamento da forma e a recriação regional dos diálogos que caracterizam o Grande sertão.
No valioso livro Guimarães Rosa: diplomata (1987), trabalho pioneiro sobre os diversos entrelaçamentos da diplomacia na vida e na obra do escritor, Heloísa Vilhena de Araújo propõe que se compreenda a "atitude platônica" de Guimarães Rosa como uma característica presente não apenas nos seus livros mas também na sua atuação como médico e diplomata. Essa atitude platônica equivale à do homem justo, diante dos seguidos dilemas da existência. No capítulo Eternidade e história, é apresentada a declaração do escritor quando, no Consulado em Hamburgo, testemunhou a perseguição aos judeus tramada pelos nazistas: "Eu, o homem do sertão, não posso presenciar injustiças".
A atuação de Rosa em Hamburgo, no período de 1938 a 1942, não se reduziu à rotina consular e à coleção de casos pitorescos. Ao contrário, durante sua passagem pelo consulado, não apenas a sua capacidade de trabalho foi testada à exaustão mas também o alto valor do seu humanismo. No ainda debatido tópico das diretrizes governamentais brasileiras sobre a emissão de vistos para judeus, ele surge engrandecido por sua sensibilidade e sentido de dever moral, que em alguns momentos estiveram mais elevados do que algumas das instruções existentes, marcadas pela ambigüidade e por visível laxismo. Um historiador como Jeffrey Lesser, em Welcoming the undesirables (1995), considera o cônsul em Hamburgo "um diplomata extremamente preocupado e disposto", que logrou sobrepor-se a uma seqüência de contradições existentes em alguns documentos sobre a política de imigração brasileira. Apesar de Lesser nomear Guimarães Rosa "poeta" e de afirmar que esteve preso pelos nazistas após o Brasil haver declarado guerra aos aliados, acerta ao informar que o diplomata costumava ajudar as vítimas judaicas e emitia mais vistos do que a cota estipulada em lei.
Na carreira de diplomata, foi também culminante o trabalho que realizou, no Brasil, quando estava à frente do Serviço de Demarcação de Fronteiras. Foi ali, quase ao final de um trabalho exercido por 11 anos, que escreveu um dos documentos mais primorosos da diplomacia brasileira: a nota 92, de 25 de março de 1966, da Embaixada do Brasil em Assunção, relativa à fronteira brasileiro-paraguaia na região do Salto das Sete Quedas. A nota é modelo de conhecimento histórico, seguindo a lição seminal do Barão do Rio Branco, sobre os tratados que definiram a linha divisória entre os dois países, e demonstra como a questão dos limites já estava assentada pelos tratados de 1872 e de 1927. Escrita em tom construtivo, a nota indica que o grande desafio para Brasil e Paraguai seria "o aproveitamento integral dos recursos energéticos e hidráulicos do rio Paraná".
Porém, nunca se pode desprezar o tom encantatório que João Guimarães Rosa, escritor e diplomata, mantinha. Numa crônica que trata de mais um caso consular, intitulada Homem, intentada viagem, o jovem diplomata em Hamburgo relata a história de um cidadão, um "brasileiro a-histórico e desvalido", que perambula pela Europa, sem rumo, sem referência. Em três anos, aquela era a terceira vez que aparecia diante da autoridade consular, veterano, reincidente na arte e no direito de ir e vir. Segundo a legislação, o cidadão deveria ser repatriado o quanto antes, de fato dali a quatro dias, quando sairia um barco para o Brasil. Espantava Guimarães Rosa que, à espera da partida, o brasileiro ficasse sentado na ante-sala do consulado, sem qualquer, ansiedade típica do turista: como se o seu maior interesse fosse o de chegar e o de partir. "Por exemplo: José Osvaldo". Assim, de supetão, o escritor apresenta, na primeira linha, o cidadão que lhe veio buscar ajuda-dando a entender, com sutileza, que se tratava de apenas mais um viajante inconseqüente, entre tantos, entre todos nós que imaginamos viajar com um propósito. 0 vagamundo, seguidas vezes repatriado, tornava-se assim um personagem patético e triste, cuja surpreendente mania já começava a se repetir demasiadamente. Como sempre curioso, Guimarães Rosa conversou muito com José Osvaldo, não apenas para auxiliar mas para conhecer as razões de cada viagem. Passado algum tempo, depois de haver partido, José Osvaldo retornou à Europa- pronto para mais uma repatriação, que de novo aconteceu. Mas, dessa vez, a última: na entrada da Baía de Guanabara, por desrazão ou razão, ele se lançou à água e morreu, dando fim ao ciclo, ao périplo que não tinha por quê. No meio do texto, porém, Guimarães Rosa fornece uma pista: "0 mar era-lhe apenas o meio de trajeção, seu instrumento incerto, distância que palpita. 0 mar que faz lonjura. Ele era sempre da outra margem".
Aqui, o leitor encontra muitas perguntas: não seria o mar aquilo que, em Guimarães Rosa, se faz sertão? Não estaria o viajante reincidente imitando o eterno retorno do escritor a Cordisburgo, ao lugar original, apesar da ânsia de conhecer outras paragens? A crônica sobre o périplo de José Osvaldo não seria uma reflexão velada sobre a viagem e o destino, e ainda sobre a profissão do diplomata?
Assim como as perguntas, existem algumas certezas: uma delas é a da impressionante semelhança entre o caso real daquele desvalido com o personagem do conto A terceira margem do rio, de Primeiras estórias (1962), que havia encomendado uma canoa para, uma vez construída, colocar-se com ela no meio do rio e ali ficar: "Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais".
Sim: o encontro entre o escritor e o diplomata, na vida e na obra de Guimarães Rosa, acontece na consideração da viagem como elemento do próprio destino humano. As andanças de Riobaldo Tatarana pelo sertão que é, ao mesmo tempo, tão real e tão imaginário, também surgem como outra metáfora da permanente travessia do ser no período de sua existência. Assim se compreende o jogo da partida e da chegada na obra do escritor, e a humilde lição do diplomata que, ao viajar, nunca saiu do seu país. Uma convergência para a viagem circular, para a aventura que é de todos os seus leitores, que seguem a trilha de um viajante tangido pela força da terra.
Felipe Fortuna
Artigo publicado em "Idéias e Livros", do Jornal do Brasil, em 18/02/2006.
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