BISPO COM QUIXOTE
A derrota do ser-no-mundo aos olhos de uns tantos pode ser a vitória interior mesmo que travestida de desespero e dor, essa liberdade que roça a loucura. Claro e escuro coabitando na mesma dimensão. A perseguição do enigma no lugar primeiro. O real arrancado todo dia a fórceps. O avesso do avesso do avesso. A confiança no paradoxo da duração do efêmero: quanto mais escapa mais dele se tem certeza: é exatamente aí, na maior escuridão, que surge a luz. Mais turvo, mais chance de verdadeiro e próximo do divino.
Assim foi com Arthur Bispo do Rosário, nesse extremo do extremo de quem – mais do que na psicose – jogado foi no abismo do espaço asilar, só restando sua expressão pré-verbal através da linguagem das formas, das cores, das texturas. Sem mediação da letra, ou melhor dizendo, inscrevendo-se ele próprio como (música e) letra de seu auto/hetero processo criativo. Fez arte com o tremor do pensamento. Criando, ele se produziu. De fantasmas que habitavam os porões da mente, como formas que surgem das sombras na parede. Aí restava a possibilidade de sua ressurreição como sujeito, imprimindo seu traço, sua marca, sua individuação: através de bordados com linhas esfiapadas do próprio uniforme da instituição e de objetos de uso cotidiano alçados a categoria de instrumentos.
Diz-se que toda obra de arte resguarda um nonsense, bordando em suas bordas, margens, litorais a instauração da verdade, pela eclosão do ente desvelado, o além do saber, o que transcende e aponta para o indizível, para o impossível, para o limite. Nesse caso, literalmente . “Como é que eu devo fazer um muro nos fundos da minha casa” estava escrito ao lado de sua expressiva produção: cacos de vidro em cima de um muro. Seria uma suplência à falta da barreira primordial, a barra, a castração? É a óbvia associação, mas só uma hipótese, nada de analisá-lo via suas obras. The meaning of the meaning tão procurado nos escapa quando se fala de arte. Ela já é o decodificar – mesmo cifrado – do saber inconsciente que a constitui. A obra como resto de um despertar, mesmo que incipiente aqui, como tentativa de elaboração de um novo enunciado. Um percurso em torno desse lugar cavado para fora da simbolização.
Talvez ele tenha falhado – embora brilhantemente tentado – em dar sentido (senso), já que, como é sabido, ficou no censo, no cálculo, contando, “fazendo o inventário do mundo antes de se apresentar a Deus”, segundo suas próprias palavras e como evidenciam os objetos seriados de alguns de seus trabalhos. Sua obra, reconhecida internacionalmente, aponta para uma travessia, infelizmente não completada. Cabe a quem a vê escutá-la, ouvir esse silêncio, e, paradoxalmente, o grito que promove.
E Quixote com isso?
A obra de Cervantes se funda sobre o poder revolucionário do livro, da leitura, da literatura. Ou da litura, essa rasura feita nas palavras para descaracterizá-las, deformá-las, deixá-las livres para que o sentido dê quem as lê. Tanto quanto a produção artística. Fracassa a leitura enquanto compreensão, só fica a ranhura sem sentido, como Joyce, que Lacan dizia para ser lido e não entendido. Como dizia Duchamp: “The viewers are those who make the painting”. O artista desfaz o sentido ou finge desfazê-lo para que o público o reconstrua a seu modo particular, único, diferenciado – daí se dizer que a obra de arte “funciona como analista”.
Bem, o fidalgo Quixote, ele próprio um leitor inveterado e identificado com os heróis dos romances que lia, parte despreparado, da ficção para a realidade, para a batalha. Leva, então, a pior e seus amigos, “Fahrenheit bem intencionados” queimam seus livros para poupá-lo de adversidades (e aventuras!) futuras, culpando-os pelos seus excesso de imaginação, no entanto, em vão: ele já tinha sido inoculado por esse vírus. (Como se o homem precisasse disso ou daquilo para voar, para guerrear! Aliás, Navios de Guerra é o nome de outra produção de Bispo, feita de madeira, plástico, tecido e linha. E pulsões.)
Quixote encarna o herói que crê nas pessoas a despeito de zombarias, traições, decepções, golpes sofridos. Estaria aí sua loucura?
Ana Guimarães